RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Um dos principais conhecedores da segurança pública do Rio de Janeiro, o delegado da Polícia Civil Vinicius George disse, em entrevista à Folha de S.Paulo, que a sociedade fluminense é corresponsável pelas mortes na invasão dos complexos do Alemão e da Penha, na terça-feira (28).

Ele se referia à escolha pela chapa de Wilson Witzel e Cláudio Castro (então seu vice) na eleição de 2018, apoiada numa plataforma de enfrentar o crime organizado priorizando a morte. Wtizel disse que, em operações contra traficantes, sua polícia seria instruída a “mirar na cabecinha e… fogo!”.

O delegado aposta que a maioria das 64 mortes oficialmente confirmadas até a manhã desta quarta-feira (29) tenha ocorrido na rota de fuga dos complexos, perto da mata, onde “ninguém vê, ninguém filma”. “Aí é o Vietnã.”

O policial falou à reportagem antes da revelação de que dezenas de corpos estavam em uma área de mata na região da Vila Cruzeiro. Moradores contaram ao menos 70 mortos no local.

George se aposentou em novembro passado após atuar por mais de 30 anos como delegado, tendo sido chefe de operações de inteligência da Secretaria de Segurança, diretor de inspeção e correição e nas divisões antissequestro e de roubos e furtos de automóveis.

É também especialista em segurança pública e justiça criminal. Ficou conhecido por sua atuação na CPI das Milícias na Assembleia Legislativa do RJ, ao lado do então deputado estadual Marcelo Freixo (hoje no PT).

Começou como um dos “golden boys” de Hélio Luz, chefe da Polícia Civil do Rio de 1995 a 1997, no governo Marcello Alencar (PSDB). Reportagem da Folha de S.Paulo na época contava que, aos 30 anos, George fora primeiro colocado da turma de 150 delegados e havia sido um dos escolhidos por Luz para ocupar cargos de confiança na corporação.

“Não sei como era no passado. Mas, hoje, a investigação é a prioridade. Essa turma sabe investigar. E investigar sem tortura. Sabe usar a lei para dar segurança”, disse na ocasião, usando ideias e palavras parecidas com as que mantém agora, 30 anos depois.

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PERGUNTA – Por que isso explodiu agora?

VINICIUS GEORGE – Na verdade são surtos, né? No fundo, é mais do mesmo. A roupa pode ser um pouco diferente, o armamento muda ao longo do tempo. Mas na essência é a mesma coisa. O filme “Notícias de uma Guerra Particular” trata disso, mas em meados dos anos 1990. A lógica é a mesma. Agora a quantidade de mortos foi mais alta…

P – Por quê?

VG – Tem vários fatores. Você tem mais fuzis, então, quanto mais fuzil, maior a possibilidade letal. Morreram quatro policiais. Quem mata mais morre mais. A proporção variou entre 1 para 10 e 1 para 20, na média 1 por 15 [policiais mortos versus supostos criminosos mortos]. É o que foi hoje, 64, sendo 60 ditos criminosos. Pode parecer frieza da minha parte, mas não é surpresa.

P – O que explica o boom dos fuzis?

VG – A lógica da espiral de violência e, correlacionado a isso, uma corrida armamentista que aumenta a cada ano. O que pode ter a ver mais recentemente é que o governo Castro estabeleceu uma premiação para apreensão de fuzis [no fim de 2024, já havia pago R$ 2,5 milhões em bônus]. Isso estimula a apreender da mesma maneira que estimula a colocar mais para dentro, na medida em que deixa o fluxo aberto.

P – Como viu essa novidade do uso, pelo tráfico, de drones para lançar bombas?

VG – É um simbolismo novo, mas o drone não causou nenhum efeito letal. Todo mundo que morreu ali morreu por tiro de fuzil ou de pistola. A tecnologia vai sendo usada pela polícia, mas depois pelo crime também. Adivinha quem ensina o crime a usar essa tecnologia?

Agora, a gente não pode esquecer que a população do Rio de Janeiro, do estado como todo, fez a opção por atirar na cabecinha e de continuar com a mochilinha de dinheiro nas costas [refere-se à frase de Witzel e à denúncia de um delator de que Castro teria recebido R$ 100 mil em propina numa mochila, o que ele nega].

P – Refere-se a Witzel e Castro…

VG – Claro, porque já era Witzel. Mas vamos abstrair os nomes. Porque poderia ser o João ou a Maria na mesma lógica. O fato é que se nós escolhemos violência e corrupção, como é que nós não vamos ter violência e corrupção de retorno? Então, no fundo, a sociedade não é simplesmente vítima disso, ela também é responsável, é corresponsável.

P – Num contexto mais amplo da guerra das facções, como se encaixa essa investida contra o Comando Vermelho?

VG – Da mesma maneira que Rio e São Paulo expandiram para o resto do país algumas coisas, isso se deu no crime também. Então você tem uma influência do PCC que pega mais o Sul, uma parte de Minas, o Centro-Oeste, Norte. E o Rio de Janeiro sobe ali pelo Espírito Santo, pega um pouco de Minas, entra pela Bahia e vai pelo Nordeste até chegar lá no Norte.

Isso já vem de muitos anos, de décadas. E em algum momento isso dá disputa, né? Seja entre eles ou até com facções locais.

P – Mas analistas têm dito que a operação conjunta recente contra o PCC, em que não houve tiros nem morte, seria o modelo certo e o que houve na terça no Rio, um modelo errado. Concorda?

VG – É diferente. Porque, primeiro, com o PCC em São Paulo você tem unicidade criminal, você não tem várias facções, como no Rio. Aí eles vão se dividindo, se juntando. Aí tem milícia pra cá, milícia pra lá, mistura tudo. Uma confusão do caramba.

A investigação da Carbono Oculto começa a partir da Receita Federal, com dados de inteligência financeira. Ela vai no rastro do dinheiro, na contramão. Aí ela tem menos violência, até porque as ruas de São Paulo não têm tanta violência como as ruas do Rio. O crime em São Paulo está muito concentrado dentro dos presídios.

De qualquer maneira, a tática policial, dessa lógica de guerra, de entrar pro combate, é uma escolha. Você tem outras táticas, como a gente já usou no passado –um mapeamento da rota de fuga deles. Depois a gente vai pegar o cara fora. É muito mais fácil pegar o cara fora do que dentro. Eu nem fecho a rota de fuga para não dar refluxo. Por exemplo, isso não foi falado, mas eu não tenho dúvida de que essa quantidade de morte toda [na terça], a maioria foi lá na rota de fuga. Inclusive dos policiais.

P – Por quê?

VG – Porque dentro da mata, na rota de fuga, é uma loucura, né? Aí é o Vietnã. Você vai ver que isso será esclarecido. Porque ali dentro [das comunidades] era uma quantidade muito grande [de gente] pra ter essas mortes todas. As pessoas vão ver. E alguém vai filmar. Agora, lá na rota de fuga, na mata, aí ninguém vê, ninguém filma.

É uma opção. Você pode fazer uma entrada progressiva e lenta e pegar na rota de fuga. Pode nem pegar na rota de fuga, como a gente já fez no passado. Depois prender gente no interior, em outros estados, até outros países. Tá entendendo? Pra não correr risco desses confrontos. Você pode nem entrar, fazer cerco, asfixia. E com o tempo o cara vai gastando a munição, vai ficando sem dinheiro.

São táticas, são escolhas. O Marcinho VP, que é cria do Alemão, nós o pegamos assim. Entramos, deixamos a rota de fuga aberta, depois fomos pegá-lo longe [em Porto Alegre]. Tem que seguir duas coisas, o tesoureiro e a mulher, duas coisas que o cara não fica sem [risos]. Mas acha o cara. Muito melhor do que ficar matando e morrendo que nem louco.

Fez-se a escolha por esse tipo de entrada, por fechar a rota de fuga, combater e matar. E o pior, eu não tenho dúvida, isso foi montado inclusive e sobretudo pro palco político do governador, com vistas à eleição do ano que vem. Por que eu te digo isso?

P – Para ter um número maior de cadáveres?

VG – Não. Porque, se você olhar um dia antes, dois dias antes, a porta-voz da PM, o comandante da PM, o chefe da Polícia Civil, hoje secretários de governo, já estavam falando em desordem urbana, que é um jogo para cima da prefeitura. Estavam falando que excedeu a capacidade estadual, ou seja, jogando para cima do governo federal. Estavam testando a receptividade das mídias para essa fala que o governador fez [depois da operação].

Agora, aquela região toda tem 200 mil habitantes. Imagina o sofrimento desses 200 mil com isso. E a cidade como um todo. Ó o prejuízo.

P – Mas o Rio turístico, da zona sul, é muito menos afetado…

VG – Sim, claro. Você transita entre a Barra da Tijuca e o centro, passando pela zona sul, praticamente sente mais o efeito emocional disso, subjetivo —o objetivo não tem.

Agora, de qualquer maneira, para a imagem da cidade, que tem muito a ver com turismo, etc., não é bom.