FOLHAPRESS – Para escrever sobre “Mirrors Nº3”, novo filme do diretor alemão Christian Petzold, talvez valha a pena começar remetendo ao grande mestre Robert Bresson. Em algum dos seus escritos, ele fala da ocasião em que cruzou com um homem e, em dado momento, notou uma inexplicável transformação em sua fisionomia. Só depois que o homem passou, percebeu que essa mudança se devia ao fato de ter visto, chegando, sua mulher e seu filho.

Bresson notara apenas o rosto do homem e sua transformação, e observou que, se soubesse qual o motivo disso antes, a impressão que sentiu não teria tido a mesma força.

Em outras palavras, ele está falando do encanto que podemos ter diante de rostos que não se deixam decifrar —nem seu estado de espírito nem seus motivos. E é justamente isso que faz o prazer do espectador no filme de Petzold.

Ali existe, de início, uma moça, Laura. Parece perplexa, ou desgostosa, talvez até irritada com a cidade de Berlim, onde vive e estuda. Esse estado, que não é propriamente de negação, mas de mal-estar, prossegue durante a viagem ao campo que faz com dois amigos e o namorado.

Devido a esse estado, eles voltam antes, mas o rapaz perde a direção de maneira misteriosa e, de modo ainda mais misterioso, envolve-se num enorme desastre —numa estrada de terra, sem nada em volta, bastante estranho. Ele morre, mas ela escapa quase intacta.

Betty, uma senhora de meia-idade que mora ali perto, socorre e acolhe a moça. Laura passa a viver com ela. A convivência parece fazer bem a Betty, que quase exige que ela fique na casa.

Logo, outros dois personagens se introduzem na trama. Richard, o marido de Betty, e Max, seu filho. Os dois, no entanto, recebem a hóspede com muitas reticências. O filme passa a se constituir, em boa medida, de trocas de olhares entre os quatro personagens, que, aliás, falam bem pouco entre si, o que torna esses olhares fascinantes para o espectador.

O que eles querem dizer? Não sabemos. Nesse mundo de silêncios, de não ditos, nos embrenhamos no mistério dessas pessoas. Por vezes parece que Max e Richard são apenas grosseiros. Assim, embora comam seu prato favorito, em cujo preparo Laura trabalhou por horas, não dizem nada. Não sorriem. Não sabemos se eles são mal-educados ou algo assim. São pessoas rudes, isso é certo. Mas o fato de estarem com a delicada Betty, de terem vivido com ela —agora estão um tanto distanciados—, intriga o espectador.

Existe algo de inquietante no ambiente, o que torna um pouco recolhida, dividida entre a atenção que lhe dispensa Betty e as poucas palavras dos homens da casa. Aos poucos, no entanto, eles começam a tratá-la com alguma modesta intimidade. Isso só reforça a nossa inquietação. Isso poderia ser um filme de mortos-vivos caso não se tratasse de um filme, ao mesmo tempo, luminoso.

Esse ambiente dura aproximadamente uma hora, quando enfim se desencadeia a trama. Sobre ela é difícil falar sem revelar elementos que estragariam o prazer de acompanhá-la. Pode-se dizer, no entanto, que ela tem muito, quase tudo, a ver com esse ambiente descrito acima.

Nessa parte também acontece uma transformação em Laura, como se saísse de um longo transe, ou pesadelo. Não sabemos ao certo o que motiva essa transformação —outras, podemos vislumbrar melhor. Não se deve tratar essa transformação, ou a falta de explicação, como um defeito desse trabalho notável: num filme que explora os mistérios do humano sem ceder à facilidade, sempre vale lembrar que uma parte do interesse que ele desperta em nós —e que despertamos uns nos outros— vem, em boa medida, desse mistério.

MIRRORS Nº3

– Avaliação Muito bom

– Onde Mostra de SP: qui. (30), às 17h40, no Cultura Artística

– Elenco Barbara Auer, Matthias Brandt e Paula Beer

– Produção Alemanha, 2025

– Direção Christian Petzold