RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Tony Bellotto está encantado desde a noite de segunda-feira (27), quando teve uma experiência bem diferente ao subir num palco. A plateia do Theatro Municipal do Rio de Janeiro o testemunhou receber, sorriso aberto sob o cabelo curto e grisalho, seu primeiro prêmio Jabuti pelo romance “Vento em Setembro”.

“Eu nunca tive um reconhecimento crítico muito grande, ou até tive, mas nunca imaginei concorrer a prêmios como esse”, conta ele à reportagem. “Quando o livro chegou aos finalistas, fiquei realizado. Não esperava ganhar do Chico Buarque, do Marcelino Freire. O livro do Jeferson [Tenório] é ótimo.”

O escritor saiu depois para comemorar em família. Sua esposa e “primeira leitora sempre”, a atriz Malu Mader, parecia tão exultante quanto ele na cerimônia. Na manhã seguinte, o guitarrista dos Titãs pegou o celular para contar a novidade a outra presença que tem sido frequente, a médica que acompanha seu tratamento de câncer no pâncreas.

Diz, rindo, que a mensagem foi “nada como um troféu Jabuti para fazer a gente esquecer das mazelas”. E tranquiliza seus admiradores ao contar que tem encarado a doença “de maneira pragmática e realista”, após se recuperar bem de uma cirurgia recente.

Voltou a fazer shows. Diz que, durante a grande turnê que reuniu os Titãs há pouco, sentia um incômodo na coluna terrível como uma hérnia de disco. Nada a ver com a condição de hoje, mas ele lembra para contrastar com a “vida mais normal” que tem conseguido levar.

“Agora que tenho uma doença mais grave, ela não me incomoda tanto porque não dói. Estou naquela, um dia de cada vez”, afirma o artista de 65 anos. “E me aprofundando nos meus conhecimentos de zen budismo.”

A vitória como romancista literário no Jabuti vem depois de 30 anos como escritor de tramas de suspense como as do detetive Remo Bellini, sucesso tamanho que foi ao cinema com Fábio Assunção no papel do investigador.

Boa-praça, Bellotto soa sincero ao dizer que não arrisca o que pode ter cativado os jurados do prêmio mais importante da literatura brasileira depois de 11 romances publicados, mas evita chamar de coroação de uma carreira longeva, porque a celebração vem como um estímulo para fazer mais e mais.

Não quer dar detalhes sobre o novo livro que está quase finalizando, porque um de seus mestres, Rubem Fonseca, ensinou que isso dá azar. Mas diz que desde a indicação do romance no Jabuti —o livro da Companhia das Letras também foi semifinalista do Oceanos—, já recebeu três propostas de diretores para transformar a obra em audiovisual.

“Vento em Setembro” é um livro que mistura as tintas do thriller às da autobiografia de formação, tiradas da juventude do autor no interior de São Paulo. Chama o processo de “meio psicanalítico”, lembrando que se divertia ao levar até dúvidas de vírgula às suas sessões de terapia.

“Tem uma ironia, um sentido meio paródico que exagera a visão que eu tenho dos anos 1970, a quantidade de preconceitos, misoginia, homofobia, opressão masculina que eu vivi na adolescência. Apesar de todo o painel que a história abre, ironiza e critica, é sobre uma busca de identidade.”

Bellotto tem um discurso sólido para separar sua elaboração musical da literária —o título “Vento em Setembro”, aliás, remete ao “Luz em Agosto” de um de seus autores favoritos, o americano William Faulkner.

“A canção é um trabalho, em princípio, coletivo”, diz o compositor. “Quando começo a escrever música, já penso como aquilo vai soar quando eu mostrar para a banda, quando chegarem sugestões dos parceiros, quando outros instrumentos entrarem no arranjo.”

Mas não é só isso. “O trato com a palavra é totalmente diferente, muito preciso, parecido com a poesia. Na prosa vem aquele fluxo, cada palavra não importa tanto quanto o ritmo da frase inteira. A letra de música é palavra por palavra. A prosa é frase a frase.”

Desde moleque ele já se dividia entre tocar e escrever literatura, no começo coisas “muito ruins” inspiradas na sensação da época, os autores latino-americanos como Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa.

Aquilo ficou adormecido quando a música começou a “ocupar um espaço muito grande” nos anos 1980, com os Titãs. Voltou a pensar nisso no começo da década seguinte, estimulado por um professor de filosofia que era amigo de seus pais, Nilo Odália —homenageado com um personagem no novo livro.

Aí sua pegada literária já era outra. Mas quem espera encontrar a onda dos Titãs nos seus romances acaba frustrado. São manifestações muito diferentes de sua arte, o que é bom —e costuma ser regra.

“Alguns dos meus heróis roqueiros se aventuraram pela prosa. O caso óbvio é o Bob Dylan, mas o Pete Townsend do The Who também tem um romance recente. E você não encontra uma coisa na outra. Quando lê a prosa do Dylan, não tem a letra ou a melodia da música dele”, afirma. “É quase como ser engenheiro e ser técnico de natação.”