RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – O pensador italiano Franco Berardi, conhecido como Bifo, construiu seu trabalho intelectual em casa, influenciado pelo pai comunista e pela militância no movimento de 1968.
Trabalhou e interagiu com pensadores como Gilles Deleuze, Félix Guattari e Antonio Negri, conduziu experiências pioneiras de comunicação, como a criação da primeira rádio livre da Itália, e ensinou por 20 anos em uma escola para trabalhadores, além de lecionar na Academia de Belas Artes de Milão.
Sua obra combina crítica política e conceitos da psicanálise, investigando como o capitalismo financeiro, a precarização do trabalho e a aceleração tecnológica moldam o inconsciente coletivo, os afetos e as relações humanas.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, Bifo, hoje uma das vozes mais inventivas e provocadoras da filosofia contemporânea, afirma não acreditar que, na era Trump, haja chance de conter a destruição ecológica do planeta, levando a expressão “última geração” ao pé da letra.
“Reduzir as emissões de carbono é a última das preocupações da liderança política mundial. Além disso, é preciso considerar que as tendências devastadoras já chegaram ao limiar da irreversibilidade. O planeta está condenado, e acredito que o inconsciente coletivo da humanidade já internalizou essa evidência.”
Para ele, não sobreviveremos a este século porque, enquanto o capitalismo destrói o planeta e o caos geopolítico leva a um rearmamento generalizado, o cérebro humano está fora de serviço.
“Há saída para essa situação suicida? Não penso que haja, porque a mente humana, como um todo, já não é mais capaz de sentir solidariedade, de criar organização social e de imaginar uma estratégia para o futuro.”
O filósofo, que vê em Gaza um símbolo da regressão à ferocidade nas relações humanas, com a brutalidade tomando o lugar da lei, participou das recentes manifestações pró-Palestina que tomaram as ruas de diversas cidades na Itália.
“Prefiro saber que a motivação ética é suficiente para um movimento amplo, mesmo que não seja suficiente para deter o barbarismo e a idiotice.”
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PERGUNTA – Apesar das emissões globais de gases de efeito estufa continuarem a crescer e das críticas generalizadas ao sistema ONU, há uma grande expectativa em torno da COP30, conferência do clima no Brasil neste mês de novembro. Como descreveria esse clima de expectativa?
FRANCO BERARDI – Eu conheço muito pouco desse sentimento de que você está falando. O que sei é o seguinte: o principal negócio das lideranças políticas do Ocidente é a guerra. A União Europeia está totalmente engajada em aumentar os gastos com armamentos e em se preparar para a guerra contra a Rússia.
A Rússia, por sua vez, está totalmente engajada em travar a guerra contra a Ucrânia e investindo suas energias na preparação da guerra com o Ocidente. Isso implica uma redução do dinheiro disponível para o Green Deal (Pacto Ecológico Europeu).
A Alemanha, que esteve na vanguarda das políticas de redução de emissões de gases de efeito estufa, reabriu minas de carvão após romper laços econômicos com a Rússia. Francamente, acredito que, na era Trump, não temos nenhuma chance de conter a destruição ecológica do planeta.
P – O que o senhor acha de medidas como a taxação dos super-ricos, assembleias cidadãs, a transferência de empresas de petróleo e gás para controle público e novos modelos econômicos? São formas viáveis de enfrentar a crise climática?
FB – Taxar a produção que causa danos ecológicos seria a única forma de conter a devastação do planeta. Mais amplamente, as escolhas econômicas deveriam ser submetidas ao objetivo maior de proteger o meio ambiente. Sejamos realistas: reduzir as emissões de carbono é a última das preocupações das lideranças políticas. Além disso, é preciso considerar que as tendências devastadoras estão chegando ao limiar da irreversibilidade.
O planeta está condenado, e acredito que o inconsciente coletivo da humanidade já internalizou essa evidência. O que pode ser feito? Suspender a procriação, preparar-se para a autodestruição da espécie humana: este é o único caminho de fuga do inferno.
P – O senhor disse que não gosta do termo resistência, pois implica ser forçado a reagir contra algo imposto, e prefere focar em entender o que acontece profundamente em nossa subjetividade. O que está acontecendo com a nossa subjetividade e como isso se relaciona com o colapso ambiental?
FB – Nenhuma agenda política pode reverter a tendência apocalíptica que assumiu o controle. Eu levo a expressão “última geração” ao pé da letra. A tendência demográfica é a resposta efetiva à devastação mundial irreversível.
As mulheres decidiram, consciente e inconscientemente, não procriar. A geração millennial está desertando a sexualidade, particularmente a sexualidade reprodutiva. As taxas de fertilidade e natalidade estão em vertiginosa queda e, na minha opinião, isso é apenas o começo de uma tendência já irreversível.
A humanidade não sobreviverá a este século. Isto é uma agenda política? Absolutamente não. Não me interesso por agendas políticas, já que a política se tornou uma ciência impossível na era da irreversibilidade. O que me interessa é a boa vida, na esteira da extinção.
Esse é o meu ponto de vista pessoal, já que estou muito próximo da morte, mas não quero renunciar à boa vida, no curto tempo que ainda me resta.
Sei que a minha posição pode estar ligada à minha condição pessoal de envelhecimento. Isso é verdade. No entanto, não se deve esquecer que a minha condição é cada vez mais disseminada: um terço da população ocidental está envelhecendo, e essa tendência não está recuando, e vai atingir também os países do Sul Global.
P – O senhor sugeriu que artistas, ativistas e movimentos anticapitalistas deveriam inventar formas de comunicação hipersintéticas. Como isso se daria na prática? Isso não poderia aprofundar a fragmentação que identifica como um dos principais problemas atuais?
FB – O movimento reacionário triunfou graças à sua capacidade de engajar formas hipersintéticas de comunicação, como memes. Sabe por quê? Porque a aceleração da infosfera, e a consequente aceleração da atividade mental, tornaram o raciocínio uma tarefa impossível.
O tempo de atenção da mente humana foi reduzido a oito segundos. A mente conectada da nova geração não consegue focar em um assunto por mais de oito segundos. Além disso, o uso difundido da inteligência artificial tende a subordinar ainda mais nossas mentes ao autômato.
Se quisermos comunicar com nossos semelhantes, se quisermos ser compreendidos pelas massas, devemos aprender a nos comunicar de forma hipersintética e irônica. Não penso que possamos vencer essa batalha, pois a batalha da mente vem sendo travada nos últimos 40 anos, e o capitalismo venceu, destruindo a mente humana.
No curto intervalo que nos resta, devemos aprender a nos comunicar de duas maneiras: de forma crítica e memética.
P – Na sua visão, por que nossa única opção é evitar ou mesmo abandonar o futuro?
FB – Olhe para as cidades norte-americanas, o que você vê? Vejo um novo tipo de guerra civil, que pode ser chamada de guerra civil da degeneração mental ou guerra civil caótica. A guerra civil está em todo o Ocidente envelhecido.
Mas não é uma guerra política travada por frentes coerentes, conscientes e organizadas, como aconteceu na Espanha em 1936. Todos estão atirando em todos, esta é a nova marca da guerra civil. Por quê?
A resposta não é política, a resposta é: degeneração mental. Você sabe que o dicionário Oxford declarou que “brain-rot” (podridão cerebral) foi a palavra mais usada na internet global em 2024? Isso é um bom símbolo da condição atual do mundo.
Enquanto o capitalismo extrativista destrói o planeta, enquanto o caos geopolítico leva a um rearmamento generalizado, o cérebro humano está fora de serviço, porque foi submetido a um bombardeio neurológico nos últimos 30 anos.
A geração que aprendeu mais palavras com máquinas do que com a voz de outro ser humano está assolada por depressão, isolamento, solidão e por uma raiva desvairada que, cada vez mais frequentemente, se manifesta como uma espécie de demência senil se espalha por toda parte. E essa demência está se tornando furiosa, homicida.
Há saída para essa situação suicida? Não penso que haja, porque a mente humana, como um todo, já não é mais capaz de sentir solidariedade, de criar organização social e de imaginar uma estratégia para o futuro.
Eu sei que o Brasil é um dos poucos lugares no mundo onde a solidariedade não desapareceu, onde uma grande parte da população tenta manter viva a possibilidade de uma vida boa. Mas eu vivo na Europa, e vejo que a maioria da população europeia entrou em um ciclo de agressividade racista, enquanto a classe dirigente europeia está construindo a guerra.
P – Qual é a sua opinião sobre movimentos emergentes que buscam responder à crise climática por meio de iniciativas ou exercícios políticos que recuperem uma existência utópica e imaginem futuros possíveis?
FB – Faço parte desse movimento, sempre fui comunista e serei comunista por toda a minha vida. Participo das manifestações contra o genocídio israelense, compartilho o desejo por uma nova onda de luta de classes contra a exploração e a precariedade.
Mas não posso ser ingênuo. Lembro-me das palavras de Simone Veil em 1933, enquanto os nazistas tomavam o poder na Alemanha: “a pior coisa não seria apenas ser impotente para derrotar os opressores, mas também ser incapaz de compreender e de expressar aquilo que compreendo”.
Por isso, pratico pensar com dois cérebros: com um deles participo do movimento contra a catástrofe iminente, mas, simultaneamente, com o outro sei que a história humana está rapidamente chegando ao fim -e procuro maneiras de tornar a autodestruição o mais suave e terna possível.
P – A ministra do Meio Ambiente Marina Silva, que admira seu trabalho, lançou uma nova iniciativa para esta conferência climática: o Balanço Ético Global. Ela visa incorporar considerações éticas nas respostas à crise climática, reunindo vozes diversas para fortalecer a dimensão humana e moral das decisões em Belém. Como a sociedade pode ser mobilizada eticamente para responder ao colapso ambiental em um momento tão crítico?
FB – Concordo totalmente com esse esforço. Não importa quão grave seja a situação, não importa quão desesperados possamos estar, a motivação ética é a mais forte.
Somente a motivação ética pode levar à mobilização de energias em direção ao objetivo de reverter a tendência rumo à destruição ambiental e à guerra.
P – Como celebrar e fomentar ternura, sonhos e o prazer dos sentidos, como o senhor sugeriu no manifesto pós-futurista?
FB – Enquanto estamos neste planeta, temos um corpo que quer ser feliz, temos amigos que desejam nossa ternura, geramos filhos, cada vez menos, mas algumas crianças nasceram.
E aqueles que nasceram têm o direito de viver uma b oa vida, mesmo no crepúsculo da história humana.
Escrevi o manifesto pós-futurista em 2009, no centenário do manifesto futurista original. Ainda não estava consciente de que vivemos em tempos terminais. Agora sei. No entanto, estou convencido de que, enquanto vivermos, devemos buscar alegria e ternura.
P – O senhor disse que política, democracia e direitos humanos se tornaram palavras vazias após Gaza. O que vem depois de Gaza? Há formas de dar novo significado a esses conceitos?
FB – Nasci logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Meu pai era comunista e me dizia inúmeras vezes: você nunca conhecerá o horror do fascismo e da guerra.
Infelizmente, ele estava errado. Quando jovem, confiei nas palavras: “Nunca mais”.
Eu estava errado. O nazismo voltou, o genocídio voltou.
Penso que Gaza marca a regressão à ferocidade nas relações humanas. Após Gaza, somos obrigados a pensar como Thomas Wade em “O Problema dos 3 Corpos”, romance de Liu Cixin, no qual a série de TV foi baseada: “Se perdemos nossa humanidade, perdemos algo, mas se perdemos nossa bestialidade, perdemos tudo”.
Após Gaza, a brutalidade tomou o lugar da lei, e, do meu ponto de vista, tornar-se nada é melhor do que viver em um mundo de brutalidade.
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RAIO-X | FRANCO BERARDI, 76
Bolonha (Itália), 1949. Graduado em estética pela Universidade de Bolonha, Franco Berardi é militante desde a adolescência, tendo participado da Juventude Comunista, do Potere Operaio e da Autonomia Operaia. Fundou a revista A/traverso e a primeira rádio livre da Itália, Radio Alice. Foi professor em escolas de trabalhadores por 20 anos e na Academia de Belas Artes de Milão. Autor de cerca de 20 livros, traduzidos para 24 idiomas, alguns deles disponíveis em português, como “Depois do Futuro”, “Asfixia: Capitalismo Financeiro e a Insurreição da Linguagem” e “Pensar Após Gaza: Ensaio Sobre a Ferocidade e o Fim do Humano”.




