RIO DE JANEIRO, RJ E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – É dia de festa na quadra da escola de samba fictícia Flor de Madureira. A bateria da agremiação anima o ambiente, até que a batucada é interrompida por uma briga que toma conta do espaço, com cadeiras de plástico voando pelo ar e cerveja se espalhando pelo chão. “Corta”, alguém grita no set. A confusão termina, e todos batem palma. A tomada, complexa devido à quantidade de pessoas presentes, enfim deu certo.

A cena faz parte da série “Os Donos do Jogo”, que estreia como o maior investimento do ano da Netflix no Brasil -embora a plataforma não revele valores. A confusão encenada ali acompanha a trajetória do protagonista, Profeta, papel de André Lamoglia.

Ele é um forasteiro do interior fluminense, cheio de lábia e “sex appeal”, que vai ao Rio de Janeiro em busca do sonho da família de pertencer à alta cúpula do jogo do bicho. No caminho, tropeça numa disputa de poder entre duas irmãs, filhas de um empresário lendário na cidade, pelo comando da máfia.

Já viu essa história? É evidente a inspiração no caso de Shanna Garcia e Tamara Garcia, filhas de Waldemir Paes Garcia, o Maninho, vista no noticiário nas últimas décadas e no documentário “Vale o Escrito”, que o Globoplay lançou há dois anos. Mas Dhalia e seu produtor, Manoel Rangel, afirmam que a nova série não tem qualquer viés documental.

Enquanto a obra da concorrente se aprofunda na estruturação do jogo do bicho, com a divisão territorial no Rio e a ligação dos bicheiros com as escolas de samba, das quais se tornaram patronos, a produção da Netflix é centrada na guerra de sucessão entre as irmãs, uma espécie de “Game of Thrones” do bicho, que tenta extrapolar a realidade olhando para o presente e imaginando o futuro dessa contravenção.

Muita coisa tem acontecido, afinal. Se hoje o jogo escrito -um sorteio a partir de números que correspondem aos animais- pode ser coisa do passado em alguns lugares, há as máquinas de caça-níqueis -nem tão novas, mas que ainda prevalecem em algumas comunidades- e as novíssimas apostas online como as bets. Isso tudo enquanto um projeto de lei, em debate no Senado, busca legalizar o bicho, os cassinos e os bingos no Brasil.

É um universo tão amplo, dizem os criadores, que mesmo antes da estreia eles já vislumbram uma continuação. “A contravenção se especializou em sorte ou azar -em jogo, não importa qual. E jogo é com essas famílias de mafiosos, que se atualizam”, afirma Rangel.

As novidades, diz o produtor, não se limitam ao campo das ideias, mas se estendem à interpretação visual desse universo, com os cenários e os figurinos. “A série é diferente de como a dramaturgia representou o bicho em filmes como ‘Boca de Ouro’, ‘Natal da Portela’ e ‘Filhos do Carnaval’. De maneira geral, há um imaginário das décadas de 1960 e 1970 folclórico nessas representações.”

A nova visão surgiu, ele afirma, depois que a elite carioca, que reprovava até os desfiles de Carnaval, por sua ligação com as favelas, a pobreza, a negritude e os bicheiros, passou a conviver bem com a contravenção. “É um universo que envolve todo o Rio de Janeiro, desde onde eles ganham dinheiro -o subúrbio- até onde eles gastam -a zona sul e a Barra da Tijuca”, afirma o ator André Lamoglia, ao contar que as gravações dispensaram os estúdios para buscar a realidade nas ruas cariocas.

A série, embora tenha sido criada para agradar ao assinante brasileiro da Netflix, também pode ser vista por outros 190 países. Com isso, a expectativa do gigante do streaming é inaugurar sua corrente das histórias da máfia brasileira, na esteira de sucessos como “La Casa de Papel”, feita na Espanha, e “Narcos”, com episódios gravados na Colômbia e no México, todas de enorme sucesso global.

Para isso, escolheram a exuberância quente do Rio de Janeiro, da praia, do samba, do luxo e do botequim, e alguns astros já conhecidos do público da Netflix, caso de André Lamoglia e Juliana Paes. Ele fez sucesso na série espanhola “Elite”, e ela protagonizou o primeiro experimento da plataforma com as novelas em “Pedaço de Mim”, que chegou aos rankings das séries mais vistas também no exterior.

O elenco tem ainda Xamã, no papel de um lutador de artes marciais que se casa com uma das filhas do maior mafioso do Rio, Susana, e disputa o poder com o protagonista, que se casa com a outra filha, Mirna.

O artista conta que esse universo é familiar. “Na infância, minha família jogava no bicho e eu buscava o resultado da corujinha à tarde e à noite. Não entendia nada. Era místico, folclórico. Depois fui entender que era uma máfia.”

Suas lembranças encontram eco nas de Juliana Paes. “Minha avó jogava olhando a borra do café no fundo do café. Hoje vai dar borboleta, aí a gente fazia ‘a fezinha’, como a gente diz no Rio, sem nem entender bem como funciona.”

Ao se preparar para gravar a série, o elenco não só pôde entender a engrenagem do jogo, mas também por que as pessoas, sobretudo nas comunidades mais pobres do Rio, se apegam aos bicheiros. Ao mesmo tempo em que tomam dinheiro da comunidade com o bicho, eles se sagraram benfeitores nesses lugares.

Em “Os Donos do Jogo”, isso se traduz no interesse que o público tem por vilões, na esteira do sucesso de Odete Roitman, a malvada que dominou a nova versão da novela “Vale Tudo”. “Tenho visto muitas histórias de vilões e anti-heróis, e não só com Odete Roitman. O filme do Coringa, por exemplo. Ele é mau só porque é mau? Qual foi o ambiente em que cresceu? Fazemos as mesmas perguntas na série”, diz Xamã.

Juliana Paes diz que não encontrou pares na dramaturgia para interpretar uma mulher que não é só decorativa, mas pivô das intrigas de um universo dominado por homens. Foi o mesmo caso de Mel Maia, que interpreta Mirna, sua primeira personagem adulta, e Giulia Buscacio, que vive Susana. “Elas são o cérebro da coisa. Sem elas, o bicho não andaria. Só que elas não podem sentar na cúpula”, afirma Maia. “Mas elas mostram que o poder não está só na força”, acrescenta Buscacio.

Todo esse interesse da equipe no jogo do bicho, no entanto, não é sociológico, dizem os criadores. “É entretenimento”, diz Heitor Dhalia, acrescentando que, no entanto, a série se apoia numa tradição que vai de Nelson Rodrigues a Francis Ford Coppola, atravessando a crônica popular do Rio de Janeiro, e interage com o mundo de carne e osso.

“A ficção e a realidade são espelhos”, afirma o diretor. “Coppola criou o universo da máfia, que não era daquele jeito, e depois a máfia começou a copiar. É o espelho que reflete e molda o mundo. É isso o que a gente busca, é entender o nosso mundo.”