FOLHAPRESS – A imagem é impactante. De um barco, a câmera se aproxima de uma cidade. As dimensões de céu e mar vão se alterando conforme o barco faz a manobra de aproximação. Para onde vai? Que terra é essa?
A imagem ainda está no início de “Fuck the Polis”, longa mais recente da portuguesa Rita Azevedo Gomes. A realizadora de “A Vingança de uma Mulher” volta à Grécia após alguns anos, percorrendo cidades e ilhas em busca de personagens, paisagens e sensações.
O filme começa, na verdade, com o vídeo de uma dança tradicional grega observada por uma plateia. São três minutos de ritual, numa imagem escura, propositalmente precária, que dá lugar à imagem solar do barco chegando na cidade. E, em seguida, a imagem muito semelhante da cidade vista do barco, mas claramente mais antiga, com menor definição.
Com a ajuda literária de Albert Camus, Konstandinos Kavafis, Lord Byron, John Keats e João Miguel Fernandes Jorge, a cineasta faz um diário de viagem com belíssimas imagens e imenso respeito pela palavra.
E faz um filme impregnado de Grécia, e ainda muito português. Europeu, se preferirem, já que envolve dois países do continente. Mas resgata algo de Portugal da época dos grandes descobrimentos. Um filme quase intimista que lembra um período grandioso das aventuras pelos oceanos.
Vemos encontros e reencontros, visitas e revisitas. Muito pessoal, remete a um diagnóstico médico pouco promissor que causou uma viagem em 2007. Ela achava que podia ser sua última oportunidade. Não foi, e com isso o cinema ganhou alguns dos melhores filmes dos últimos 15 anos.
A viagem feita naquela ocasião é reprisada parcialmente aqui, claro que de outro modo: os lugares mudaram, a cineasta também, a máquina de filmar idem. O que poderia ser entediante se enche de graça com a curiosidade e a atenção para os detalhes.
Em dado momento, Rita vai atrás de uma cantora que a encantou anteriormente. No reencontro, há cantoria e o encantamento se repete. E nós testemunhamos esse encantamento. Difícil não surgir uma lágrima nos olhos diante de um momento tão belo.
Muito se fala de Manoel de Oliveira e João César Monteiro, cineastas incontornáveis da chamada escola portuguesa. Fala-se também de Hans-Jürgen Syberberg, cineasta alemão importante para uma geração do cinema português. A própria Rita prefere reivindicar Werner Schroeter, outro cineasta alemão, contemporâneo de Syberberg, como uma de suas principais referências.
No entanto, é com a cineasta e escritora francesa Marguerite Duras que Rita Azevedo Gomes desenvolve uma relação instigante de continuidade e contraposição. É nesse nível que opera uma das cineastas mais criativas do cinema contemporâneo.
Mais do que qualquer outro filme de sua autoria, é “Fuck the Polis” que deixa essa comparação mais evidente, comparação, aliás, que é muito mais de qualidade do que de similaridade, nunca de imitação.
A cineasta consegue impressionantes abstrações a partir de planos da natureza afetada pelo vento ou de reflexos monocromáticos. É possível até falar de impressionismo cinematográfico, em um nível que não estamos acostumados a ver.
Se a exposição dos impressionistas chocou a burguesia na década de 1870, hoje nada pode provocar tamanho choque. Temos um cinema que definitivamente não é para todos os gostos, mas que recompensa bastante quem estiver disposto a se abrir a ele. Como o de Duras, aliás.
Em dado momento, as imagens sofrem distorções propositais, parecendo imagens exibidas num programa de um computador que executa várias tarefas ao mesmo tempo. O efeito é curioso, pois remete ao pós-impressionismo dos fauvistas ou de Cézanne e aos percalços da imagem digital.
A cineasta não tem receio de experimentar com novas linguagens e de testar algo novo com o artesanal. É nesse sentido, sobretudo, que está a sintonia com Duras. E na maneira como a literatura complementa a vida em via dupla.
“Fuck the Polis” poderia se chamar “E a Vida Continua”, se o título não fosse tão batido. Afinal, tudo que vemos parece motivado por um desejo de refazer a viagem que poderia ter sido a última, mas felizmente não foi, porque a vida continuou.
O cinema de Rita Azevedo Gomes é um dos mais livres que se faz hoje, fruto de muita paixão e disposição para arriscar e se colocar em cena. Que os frequentadores da Mostra reservem 74 minutos para descobrir esta singela maravilha.
Fuck the Polis
Quando 29/10, às 14h, no Espaço Petrobras de Cinema
Classificação Não indicada
Elenco Bingham Bryant, Mauro Soares e João Sarantopoulos
Produção Portugal, Grécia, 2025Direção Rita Azevedo Gomes
Avaliação Ótimo




