PARIS, FRANÇA (FOLHAPRESS) – No meio da entrevista de Bernard-Henri Lévy à Folha de S.Paulo, no restaurante de um hotel do oitavo distrito de Paris, a hóspede da mesa ao lado se levanta e o interrompe, dirigindo-se a ele em inglês. “Você fala hebraico?”
Quando o filósofo e cineasta judeu responde que não, ela emenda, também em inglês: “Não tem ninguém como você. Obrigada!”
Décadas de engajamento em causas polêmicas valeram ao mais famoso dos filósofos franceses muitos fãs e detratores. Não é diferente no caso de sua defesa inabalável de Israel, apesar das acusações de genocídio e de crimes contra a humanidade.
Lévy, 76, expõe sua posição sobre a guerra em “Solidão de Israel” (editora Contexto), publicado na França no início de 2024, poucos meses após os atentados do Hamas de 7 de outubro de 2023. No dia 6 de novembro, ele participa de um evento de lançamento em São Paulo, a convite da entidade pró-Israel StandWithUs Brasil.
Crítico do governo de Binyamin Netanyahu, ele vê no gabinete dois “ministros fascistas”: Itamar Ben-Gvir (Segurança Nacional) e Bezalel Smotrich (Finanças). Mas refuta com veemência a tese do genocídio e os que a defendem, entre eles o presidente Lula, a quem aconselha “visitar Israel de verdade”.
*
PERGUNTA – Muitos fatos ocorreram na guerra Israel-Hamas desde o lançamento do livro na França. O sr. mudaria alguma coisa nele?
BERNARD-HENRI LÉVY – É exatamente o mesmo livro. Não me ocorreria mudar alguma coisa. Sou, antes de tudo, escritor e filósofo e, por princípio, um livro é intangível. Entendo que um escritor talvez acrescente um posfácio a seu livro. Mas, no caso deste, a questão não se colocou para mim. Todas as reflexões me parecem ainda relevantes hoje.
PERGUNTA – O sr. acredita que a solidão de Israel de que fala na obra é mais forte hoje?
BHL – Acredito que seja mais forte. Essa solidão só se agravou ao longo desses dois anos. Em outras palavras, quando intitulei este livro “Solidão de Israel”, não imaginava que estaria tão certo. Não imaginava que essa solidão seria tão completa.
P – O que o sr. acha do acordo de cessar-fogo em Gaza? Donald Trump merecia o Prêmio Nobel da Paz?
BHL – Essa história de Prêmio Nobel é pueril. Aliás, estou surpreso que os jornalistas a repitam incessantemente. Ninguém é “candidato” ao Prêmio Nobel, em primeiro lugar. Em segundo lugar, o Prêmio Nobel não é decidido na véspera de seu anúncio. Sobre o acordo, ele teve uma primeira consequência que me deixou muito feliz, que foi o retorno dos reféns vivos e de alguns restos mortais dos reféns mortos. Mas nem todas as propostas desse acordo de trégua foram implementadas, e estamos longe de um acordo de paz.
A proposta de Trump vai na direção certa por duas razões. A primeira é que ela foi apoiada pela maioria dos Estados árabes da região. E a segunda, a mais importante, é que, pela primeira vez, uma grande potência pressionou os dois lados ao mesmo tempo, não apenas Israel. Até agora, todos os pedidos de cessar-fogo, todas as iniciativas de paz pressionavam apenas Israel. Isso era injusto e não podia funcionar.
Israel não é responsável por esta guerra, e a única maneira de esta guerra acabar é o Hamas entregar as armas. Deus sabe que não sou um partidário de Trump, mas sou obrigado a reconhecer que ele foi o primeiro a ter essa ideia simples: e se pressionássemos os dois? E se pressionássemos principalmente o Hamas? Isso começou a funcionar.
P – O sr. criticou a decisão de Emmanuel Macron de reconhecer o Estado da Palestina, assim como outros países o fizeram. Teria havido, inclusive, um desentendimento entre o filósofo Alain Finkielkraut e o sr. durante um jantar recente no Palácio do Eliseu. A França errou com o reconhecimento?
BHL – Não diria que errou. Diria que não adiantou nada. Foi muita energia política, muita agitação diplomática para zero resultado. Porque não é assim que um Estado palestino vai nascer. Naquela data, há um mês, como hoje, como ontem, qual era a urgência? Havia, sim, duas urgências. A número um, o retorno dos reféns. A número dois, sem hierarquia entre as duas: a ajuda humanitária. Parar com a guerra. Parar com as mortes. Parar o banho de sangue. Essas são as duas urgências. Declarar um Estado palestino que talvez exista daqui a alguns anos não era a urgência.
O que me entristeceu na iniciativa francesa é que não ajudou a trazer de volta um refém nem a salvar um civil palestino. Portanto, não serve para nada. O único efeito que teve, e negativo, foi dar a sensação a um certo número de pessoas, isto é, aos palestinos, de que não dava em nada quando se comportavam como gente de paz, de diálogo, como foi o caso desde os Acordos de Oslo. Diziam-lhes que o Estado palestino não poderia funcionar, que não era o momento certo. No dia em que o Hamas se comporta como nazistas, aí então um grande país da comunidade internacional, a França, diz: “Ah, sim, entendemos, vocês têm razão, é preciso um Estado.” É uma mensagem errada.
*
Os Acordos de Paz de Oslo
Definição
Acordos negociados entre Israel e a Organização para a Liberação da Palestina (OLP) em 1993 e em 1995, sob mediação dos EUA
Objetivo
Paz por meio do estabelecimento gradual de um Estado palestino em territórios na Cisjordânia e na Faixa de Gaza ocupados por Israel desde a Guerra dos Seis Dias, em 1967
Data-limite para fim da ocupação
1999
Determinações
Criação da Autoridade Palestina, espécie de órgão de transição antes de fundação do Estado da Palestina que assumiu administração de serviços públicos como educação, saúde e segurança, mas sem soberania sobre território; Israel manteve controle sobre fronteiras, espaço aéreo e água
Desdobramentos
Determinações não foram cumpridas até o prazo final, e os acordos caíram; alguns de seus mecanismos, como a Autoridade Palestina, sobreviveram
*
P – O sr. teve a oportunidade de dizer isso ao presidente Macron?
BHL = Sim, disse isso diretamente ao presidente Macron, é claro.
P – E o sr. acredita que ele tenha ouvido?
A BHL – resposta do presidente Macron é que o Estado palestino é uma derrota para o Hamas, porque o Hamas não é favorável a ele. Que o Hamas não é um movimento nacionalista árabe e não tem nenhum desejo de que haja um Estado, o que é verdade. Mas você pode sofrer uma derrota estratégica no longo prazo e ter uma vitória tática no curto prazo. Declarar um Estado palestino, claro, não é o que um combatente do Hamas quer no longo prazo. Mas, no curto prazo, ter dobrado o Ocidente e a comunidade das nações, ter arrancado uma concessão, isso se chama uma vitória tática. Aliás, a parte radical da opinião pública dos países árabe-muçulmanos sabe disso e comemorou.
P – No livro, o sr. é muito crítico à relatora especial da ONU sobre os territórios palestinos, Francesca Albanese. Na sua opinião, ela não denunciou com firmeza o Hamas em outubro de 2023 e desde então. O sr. associa isso ao antissemitismo?
BHL – Não a conheço, não vou sondar sua alma, mas seu comportamento desde o início é o de uma antissemita declarada, é claro. Ela é habitada pelo ódio, o ódio a Israel e o ódio aos judeus.
P – O sr. acredita que os universitários que se manifestaram na França e nos Estados Unidos e outros, como Jean-Luc Mélenchon [líder da ultraesquerda francesa], também sejam antissemitas?
BHL – São muitas perguntas diferentes. Conheço bem a questão dos campi americanos. Eu mesmo fiz [em novembro de 2024] uma visita às universidades americanas mais marcadas por essa corrente de que você fala. Existem movimentos estudantis pró-palestinos que, estou convencido, são manipulados, alimentados e financiados por apoiadores do Hamas. É possível que entre eles haja pessoas que acreditam de boa-fé que os palestinos mereçam um Estado. Mas o impulso e o tom dominante não são esses. É um tom de ódio aos estudantes judeus. São movimentos animados por uma febre antissemita furiosa. Vi com meus próprios olhos.
P – O presidente Lula disse recentemente que não é contra o povo israelense, não é contra o Estado de Israel, e sim contra o governo de Netanyahu…
BHL – Se ele disse isso, se é realmente o que pensa, é o debate normal entre democracias. Se ele pensa, do fundo do coração, que o povo israelense é um povo irmão, que o Estado de Israel é um Estado amigável, que o Exército israelense é um Exército democrático, mas que ele é contra a política de Netanyahu, perfeito, está ótimo. Mas será que ele realmente pensa isso? Não acredito nisso.
Vi declarações contraditórias de Lula. Vi, por exemplo, comentários falando em genocídio. Ora, isso é difamação, é um absurdo. O presidente Lula é sensato demais para não saber o que é um genocídio. E para não saber o que Israel está fazendo em Gaza. Podemos discutir, podemos condenar, mas não podemos dizer que é um genocídio.
P – Mas ele não é o único a dizer isso.
BHL – Sim, mas ele não é o único a se enganar. Ou a mentir. Isso é uma mentira. Genocídio, no direito internacional, significa o projeto de extermínio metódico e total de um povo. Ora, nenhuma das características é preenchida. Um exército que previne antes de atirar, que abre corredores de retirada de civis, que leva semanas, meses, anos, para submeter e derrotar as forças militares do Hamas não é um exército genocida. Um exército genocida não previne, não poupa ninguém, faz as coisas o mais rápido possível.
P – sr. gostaria de que Lula lesse seu livro? Que mensagem teria para ele?
BHL – Se eu pudesse lhe enviar uma mensagem, perguntaria se ele já esteve em Israel [Lula esteve em Israel em 2010]. Se não esteve, ou se foi muito rapidamente, eu aconselharia, assim que tiver a oportunidade, de visitar de verdade Israel, que é uma das sociedades mais multiétnicas do mundo. Uma sociedade multirreligiosa, onde um cidadão em cada cinco é muçulmano. Multiétnica, porque são cidadãos que vêm da Europa, da América, dos países árabes, dos países do Sul, da África.
Gostaria que ele verificasse com os próprios olhos que é a única sociedade, o único país que eu conheço que eu vi muitas guerras na vida, cobri muitas guerras que vive em um estado de guerra permanente há 75 anos e que continua a ser uma democracia. Imperfeitamente, é claro. Há dois ministros fascistas no governo, por exemplo [Itamar Ben-Gvir, da Segurança Nacional, e Bezalel Smotrich, das Finanças]. Mas, de modo geral, as instituições democráticas estão absolutamente de pé. Nem a guerra as fragilizou.
Quando meu país [a França] entrou em guerra com a Argélia, de 1954 a 1962, não havia liberdade de imprensa, nem liberdade de reunião, a tortura foi legalizada. Israel, não são oito anos, são 75 anos. A imprensa é livre. Se há tortura, há um inquérito policial imediatamente, e os culpados são julgados. E a liberdade de reunião é total. Você tem metade de Israel nas ruas, todo sábado, na porta da residência de Netanyahu, pedindo sua renúncia. Eu adoraria que Lula constatasse que, nessa abominação que é a guerra para toda sociedade normal, há uma vitalidade democrática excepcional, rara, que eu nunca vi em outro lugar em circunstâncias comparáveis.
P – O sr. esteve recentemente em Israel? Tem a intenção de voltar, agora que o cessar-fogo foi assinado?
BHL – Fui recentemente. Tive a honra de discursar na praça dos Reféns [em Tel Aviv, em maio passado], diante das famílias dos reféns. Irei [de novo], é claro. Sei que há intelectuais que pregam, hoje, o boicote a Israel. É uma infâmia. Já defendi boicotes e poderia continuar a defender em certas circunstâncias.
P – Contra a África do Sul do apartheid.
BHL – Claro, defendi contra a África do Sul. Contra a Rússia soviética. A Rússia de Putin, hoje. Mas é preciso ser estúpido para considerar que há algo de comparável entre as situações que acabei de enumerar e a situação de Israel, que foi agredido, que não desencadeou a guerra. Israel não invadiu um país vizinho com vontade de conquista, como Putin. Israel luta em uma guerra que, como todas as guerras, é evidentemente abominável. Sei do que estou falando. Mas luta, ao contrário do que dizem todos que acusam, de modo a que haja o menor número de vítimas possível. E há vítimas demais, demais. Cada vítima civil é uma abominação. Mas há uma maneira de haver o menor número possível de vítimas civis: que o Hamas entregue as armas. É o que Israel diz, não depois de Trump, mas desde o primeiro dia.
P – O sr. tem novos projetos de livros ou filmes?
BHL – Há um tema que me obceca há 25 anos, o Sudão, onde fiz três reportagens em um quarto de século: as daus primeiras, para o Le Monde, em 2000 e 2007, e a terceira em agosto deste ano, para Paris Match e o Wall Street Journal. É uma guerra atroz, uma fome organizada. Com essa guerra ninguém se preocupa. Se eu tivesse um projeto, seria voltar lá pela quarta vez.
Fico abismado de ver como em toda parte no Brasil também, eu olho um pouco a imprensa do seu país há uma mobilização extrema sobre Gaza. E é claro que é importante. Mas não vejo essas mesmas pessoas dizerem uma palavra sobre a população sudanesa, que vive um calvário, fome e genocídio.
P – Um artigo de opinião recente do Jerusalem Post afirmou que, mesmo não tendo a nacionalidade israelense, o sr. é um “autêntico sionista”. O sr. se considera sionista?
BHL – Não li esse artigo, então não sei do que você está falando, mas eu amo Israel. Acho que o sionismo seja um movimento de emancipação de um povo, o povo judeu. É um dos raros movimentos de emancipação do século 20 que não se transformaram em um movimento totalitário. O sionismo permanece em grande parte fiel às suas origens.
*
RAIO-X | BERNARD-HENRI LÉVY, 76
Filósofo, ensaísta e cineasta, nasceu em uma família judia da Argélia. Destacou-se a partir dos anos 1970 na geração dos “nouveaux philosophes” (novos filósofos) franceses, de origem maoísta, mas críticos do totalitarismo, junto com Alain Finkielkraut e André Glucksmann. Na França, ganhou os prêmios literários Médicis e Interallié. Escreveu livros e dirigiu documentários sobre conflitos na Bósnia, no Iraque e na Ucrânia, entre outros. A convite da entidade pró-Israel StandWithUs, estará em novembro no Brasil para lançar “Solidão de Israel” (Contexto).




