SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Verena Cavalcante recorre à literatura para lidar com os fantasmas da sua vida. Até aí normal, muitos escritores diriam o mesmo.
A diferença é que, no caso dela, não é só metáfora para os assombros existenciais que nos atormentam a todos. “Sempre tive contato com esse lado sobrenatural da família, pela convivência com a minha avó.”
Ela conta que sua avó Dedê, de 88 anos, é uma médium poderosíssima. Católica à brasileira, no seu sincretismo cabe tudo. “Ela estudou kardecismo e tem diversas imagens de umbanda, candomblé, gnomos, duendes.”
Tem um tanto dela no romance de estreia da neta, “Como Nascem os Fantasmas”, aposta da Companhia das Letras num gênero nem sempre bem compreendido por pares literários, segundo a autora -voltamos já, já a esse ponto, mas antes deixa Verena contar o que viu aos dez anos de idade.
Eram os anos 1990, de crise energética, com um Brasil turvado por blecautes em série. “Fiquei sozinha com a minha avó enquanto rolava um apagão, e ela recebeu o espírito de uma criança que tinha desencarnado.” A família de Verena conhecia a menina, foi no velório e tudo. “Uma situação meio chocante.”
Quando olha para trás, ela lembra com afeto de “uma infância muito fora do comum, com momentos incríveis, no interior de São Paulo”, mas que tinha também “esse lado meio assustador, o convívio com os fantasmas da minha avó”. O que podia incluir peregrinação por cemitérios.
“A morte sempre esteve muito atrelada à minha existência, e também no aspecto literal da coisa.” No mesmo ano, Verena perdeu um tio e o avô. “Isso me moldou enquanto escritora.”
A garota que a avó incorporou, segundo Verena, dizia se chamar Mayara, vítima de pneumonia. O episódio um tanto autobiográfico ganhou doses fartas de violência no conto “Vovó Recebia Espíritos”, que acabou espichando e virando este seu novo livro.
A Mayara de “Como Nascem os Fantasmas” é o espectro de uma criança de sete anos com “rosto marcado de rugas, manchas e papilomas, a boca ressecada coberta de batom, o pelo grosso que espetava de uma pinta no pescoço”.
Na narrativa, seu desaparecimento vira notícia no jornal, “dois dias antes da noite de apagão que mudaria o curso de todas as coisas”. A foto publicada mostrava uma “menina banguela de calças curtas”, com o cabelo amarrado em duas tranças e “um sorriso muito vivo enchendo o rosto”.
Vamos lá, sem spoilers: a obra tem como protagonista a neta de Dona Divina, que a criou após sua filha morrer no parto. Beatriz vê gente morta, e a coisa toda vai escalando numa prosa encharcada de alguns terrores sobrenaturais e outros bem mundanos.
Há marcas de abusos diversos, como crianças espancadas pelos mais velhos. Podiam partir também “dos meninos da rua de trás que enfiavam a mão dentro da minha calcinha até doer quando ninguém estava olhando”, conforme narra o romance. Há ainda fantasmas que estupram e são estuprados.
A vira-lata Cindy Cãoford, que desfilava com “um rebolar torto de caranguejo manco”, é outro elemento literário que a autora adaptou da vida real. Na vizinhança havia uma cachorrinha que foi atropelada por um caminhão na sua frente. “Quando comecei o livro, vi que eu estava mexendo em alguma coisa da minha infância. Então quis que a Cindy fizesse parte disso.”
Verena diz que, mais jovem, experienciou momentos mediúnicos. Um deles envolveu a boneca da apresentadora Angélica, pop entre a garotada da época. Sonhava em ter uma e, quando enfim a ganhou de presente, “não sei explicar o porquê, a presença dela me incomodava terrivelmente”.
Começou, então, “a usar boneca de Judas”. Batia nela, queimava, cortava o cabelo. Uns anos depois, pediu à mãe que se livrasse da boneca. “Tenho essa lembrança claríssima de botá-la no quartinho de despejo, tomar banho e me arrumar pra ir pra casa da minha avó”. De repente a boneca estava no corredor. “Foi o maior medo que já senti na vida.”
E olha que ela não se assustava fácil. Adorava filmes de terror como “A Bolha Assassina” ou “Aracnofobia”, clássicos da Sessão da Tarde, da Globo. Se a cultura pop faz parte da sua formação, suas referências literárias atravessam gêneros diversos, de Hilda Hilst a William Faulkner.
Mas foi no horror que Verena se encontrou como autora. Um gênero, para ela, profundamente feminino. Duas equatorianas lhe vêm à mente: Mónica Ojeda, autora de frases como “não me lembro de um único dia em que não abri meu corpo para ver o sangue jorrando como água fresca”; e María Fernanda Ampuero, que em “Rinha de Galos” escreve: “À noite, galos gigantes, vampiros, devoravam minhas tripas, eu gritava, e ele vinha à minha cama e voltava a me chamar de mulherzinha”.
“A gente experimenta o horror de modo muito mais intenso do que o homem. Experimenta esse horror do corpo”, diz. Daí lhe parecer natural ter mais escritoras nesse nicho, e que o usam para falar de monstros também alegóricos.
Verena reconhece que muitas vezes o horror acaba rebaixado a uma subdivisão literária, como a que separa os romances “de literatura” e “de entretenimento” no Jabuti.
“Ao mesmo tempo que acho uma divisão meio pejorativa, é o único prêmio com certa notoriedade do país que concentra a literatura que não é a, entre aspas, a alta literatura”, diz a escritora elogiada por Raphael Montes, best-seller que sabe o que é ser esnobado por alguns círculos literários.
Ideal mesmo, para Verena, é que todas as premiações vissem com outros olhos “essas obras que, de certo modo, estão meio marginalizadas”. Como o horror, “gênero muito mal compreendido”. Não deveria.
“Ele é composto de metáforas, alegorias. É muito crítico. Às vezes as pessoas não param pra pensar nisso, já colocam na caixinha do sangue barato.” A figura do zumbi, exemplifica, representa algo -como nos anos de Guerra Fria, quando a ficção trazia mortos-vivos gerados por arma humana. “Isso reflete toda a angústia da guerra nuclear”.
Se nossos pavores falam um bocado sobre o tempo em que vivemos, é na literatura que Verena os esconjura. Ela mesma, diz, não manifesta dons como o da avó. Sua irmã, contudo, acha que a escritora tem, sim, algo de médium.
“Júlio Cortázar dizia que escrever é um modo de exercer essa mediunidade. Sou uma autora extremamente intuitiva, orgânica, caótica. Deixo as coisas brotarem e virem até mim. E o que vem é uma imagem que fica impregnada na minha retina.”
Assim nascem seus fantasmas.
COMO NASCEM OS FANTASMAS
Preço R$ 69,90 (152 págs.); R$ 39,90 (ebook)
Autoria Verena Cavalcante
Editora Suma




