CANNES, FRANÇA E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Alguns homens invadem e roubam um museu durante o dia. Poderia ser o saque de joias ocorrido no Louvre no último domingo (19), mas é a trama de “The Mastermind”, filme em que Josh O’Connor interpreta um jovem frustrado de classe média que surrupia quadros do modernista Arthur Dove de um modesto museu no interior de Massachusetts, estado americano onde mora.
O novo filme de Kelly Reichardt, nome proeminente do cinema americano independente, faz um comentário espirituoso sobre a desilusão da classe média com o sonho americano enquanto acompanha o passo a passo do crime de James -e sua fuga.
A trama se passa nos anos 1970. A matança da Guerra do Vietnã é transmitida na televisão e protestos eclodem nas ruas dos Estados Unidos, mas James, personagem de O’Connor, não se importa. Estudante de arte frustrado e pai de família, ele está desempregado e é rechaçado pelo pai, que trabalha na prefeitura da cidade e tem uma casa espaçosa e confortável, onde James cresceu.
“Era um momento interessante. A América estava chocada por descobrir que entrou na guerra [do Vietnã] por uma mentira. E depois acontece o Watergate”, disse Reichardt, sentada debaixo de um guarda-sol em um terraço em Cannes. “The Mastermind” brigou pela Palma de Ouro no festival, dada a Jafar Panahi por “Foi Apenas um Acidente”.
“Era a perda de inocência de um país. É difícil convencer uma pessoa jovem sobre isso. Meus alunos só se tornaram politicamente conscientes após Donald Trump”, diz ela. Diretora de filmes celebrados no circuito independente, como “Certas Mulheres”, com Kristen Stewart e Lily Gladstone, e “First Cow – A Primeira Vaca da América”, Reichardt dá aula na universidade de Bard College, em Nova York.
Suas narrativas costumam ser mais contemplativas, com diálogos simples e protagonizados por personagens comuns, que no geral estão às margens das histórias. Em “First Cow”, por exemplo, um chinês e um cozinheiro que procuram oportunidades no oeste americano, em 1820, se tornam amigos e enfrentam perrengues de faroeste juntos.
Já James, de “Mastermind”, é o clássico homem branco de classe média frustrado -e ele parece consciente disso, o que alimenta uma espécie de rancor em relação a tudo e todos ao seu redor. “Isso é interessante para mim. Entender quem somos nós mesmos e quem somos nós em uma sociedade”, diz Reichardt.
Em Cannes, o filme gerou burburinho por ser protagonizado por O’Connor, que desfilou no tapete vermelho do festival também com o longa “A História do Som”, em que vive um romance gay com Paul Mescal. O ator britânico já tinha sido aplaudido antes na Croisette em 2023, quando estrelou o drama italiano de Alice Rohrwacher, “La Chimera”, ao lado de Carol Duarte. Foi pela atriz brasileira, O’Connor conta, que ele conheceu Reichardt. Duarte o apresentou a Karim Aïnouz, que aproximou ele da diretora americana.
Por coincidência, Arthur, personagem de O’Connor em “La Chimera”, lembra James, papel que ele interpreta em “The Mastermind”. No longa italiano, ele também vivia um ladrão de arte, que escavava sítios arqueológicos com amigos para revender estátuas etruscas e romanas no mercado clandestino. Arthur, porém, é perturbado pela perda de sua amada e parece buscar algo mais profundo, ao contrário de James.
“Minha sensação sobre a vida é que estamos fazendo descobertas o tempo todo sobre nós mesmos. E se formos fortes o suficiente, podemos fazer mudanças na nossa vida, nos adaptarmos, sermos pessoas melhores”, diz O’Connor. Ele se identifica com a busca existencialista de Arthur, algo que tenta suprir com seus papéis no cinema. “Estou interessado nesses grandes momentos da vida, que talvez não identificamos quando os vivemos. Eu trabalho tentando entender a condição humana.”
Em “The Mastermind”, ele diz que se interessou pela masculinidade frágil de seu personagem, sustentado pela esposa trabalhadora. “O que isso causa em um homem que cresceu acreditando que seu pai é um vencedor enquanto a esposa fica em casa cuidando da casa? Isso afeta seu ego de alguma forma. Em um passado não tão distante, homens que iam para a guerra eram considerados heróis”, diz.
Durante as gravações de “The Mastermind”, ele lembra, foi a situação política nos Estados Unidos que mais o impactou. Parte das filmagens aconteceram em Ohio, estado com forte base trumpista e território eleitoral de J.D. Vance, vice-presidente dos Estados Unidos.
“Nem sei como chegamos aqui. Estou muito confusa sobre o momento em que vivemos. Eu sabia que seria ruim, mas eu não sabia que seria tão ruim, e tão rápido”, disse Reichardt. Apesar do perigo que as artes enfrentam no país diante da ofensiva de Donald Trump para controlar o setor cultural, ela diz que a ameaça a cineastas que não têm o apoio de grandes estúdios bilionários não é novidade.
“As pessoas dizem que é o fim do cinema independente desde que eu tinha 20 anos. De alguma forma, isso me empoderou”, brinca.
THE MASTERMIND
Onde Nos cinemas
Classificação 14 anos
Elenco Com Josh O’Connor, Alana Haim e John Magaro
Produção Estados Unidos, 2025
Direção Kelly Reichardt