(FOLHAPRESS) – Existe uma América da guerra e outra contra a guerra. Kelly Reichardt habitualmente prefere um terceiro tipo de americanos: aqueles sem eira nem beira, nem cá nem lá, sem destino, sem busca, por vezes um pouco niilistas, como J.B. (Josh O’Connor).
É bem o caso de J.B., protagonista de “The Mastermind” e antigo estudante de artes que deixou a escola de lado, não se sabe nem por que, mas ainda pratica com prazer pequenos furtos de objetos no museu da pequena cidade de Massachusetts, onde vive.
Casado e com dois filhos, J.B. decide, no entanto, empreender o roubo inconsequente de quatro quadros de um artista cuja obra conhece bem. Inconsequente porque amadorístico por qualquer lado que se deixe observar. E, claro, não demora para o feito ser detectado pela polícia.
J.B. queria se livrar das dívidas com a generosa mãe (mulher de um juiz local) e prover a família. Aparentemente, lutar por um emprego decente não estava em seus planos. É inevitável que a ação vá afetar a mulher e os filhos, que, no fundo, são suas vítimas. Mas para ele tudo o que importa é o gesto transgressivo.
Os filmes de Kelly Reichardt às vezes dão prioridade a personagens femininos, outras a masculinos (por vezes são neutros também). Aqui estamos bem na categoria de filmes em que os gestos do homem -protagonista- incidem sobre a vida das mulheres -coisa que a direção faz de forma discreta e eficiente.
Estamos também na esfera do filme histórico. Como em seus faroestes, a diretora busca um ângulo particular de observação. Aqui, o momento é a virada dos anos 1970. Portanto, um momento de divisão profunda da sociedade nos Estados Unidos. Existem os (em geral) velhos patriotas, que odeiam qualquer movimento contra a guerra no Vietnã e adjacências.
Existem do outro lado os hippies, que respondem à situação de maneira pacífica, mas cujas vestes, cabelos e atitudes não deixam dúvidas sobre sua oposição à guerra, assim como a hostilidade que lhes votam as pequenas cidades. E existem ainda as pessoas “conscientes”, aquelas que se mobilizam e fazem passeatas contra a guerra.
Elas são o pano de fundo, tão mais marcante quanto menos intrusivo na saga de J.B. Ele faz parte de outro grupo, que não é bem um grupo: são os desgarrados, os sem eira nem beira da nação, essa categoria nunca categorizada, porque totalmente heterogênea.
Ali cada um é um. Por exemplo, J.B. Por que ele não vai atrás de um emprego? Filho de um juiz, podia mexer os pauzinhos que conseguiria alguma coisa que o livrasse, entre outras, da condição de parasita da mãe.
Se fizesse isso, é claro que não haveria filme. Porque o interesse da autora está justamente no périplo, no longo caminho de fuga.
Estamos, de certa forma, em um “road movie” que evolui por uma estrada (várias estradas do Meio Oeste dos Estados Unidos) que nunca leva a parte alguma, a não ser ao final seco, irônico, surpreendente de “The Mastermind”.
A força dos filmes de Reichardt é ainda maior na medida em que ela troca a atitude crítica pela observação. Se algo é crítico, deve-se sempre à escolha de seus personagens, às relações que mantêm entre si ou com o mundo. Com isso, a autora vai construindo uma visão pessoal da vida e das contradições das vidas em seu país.
Coloca-se à margem, para melhor digerir e dispor essas vidas que se passam, também, às bordas da sociedade oficial. Mas é dali mesmo que, efetuando um recuo de mais de 50 anos, descobre um país dividido. Isto é, por outras palavras (ou imagens), Reichardt evoca outro momento de fratura profunda dos Estados Unidos, talvez mais decisiva ainda do que aquela dos tempos do Vietnã.
Ou sejamos claros, muito mais consequente e brilhante do que seu pobre anti-herói, Reichardt continua a levar adiante sua obra bela e transgressiva.
THE MASTERMIND
Avaliação Ótimo
Onde Em cartaz no cinemas
Classificação 14 anos
Elenco Josh O’Connor, Alana Haim, John Magaro
Produção Estados Unidos, 2025
Direção Kelly Reichardt





