FLORIANÓPOLIS, SC (UOL/FOLHAPRESS) – Os primeiros casos de zika no Brasil foram confirmados em abril de 2015. Somente depois de dez anos, o governo federal começou a pagar indenização e pensão vitalícia às famílias afetadas pela síndrome congênita associada à infeção. Contudo, o país segue sem vacina e, na avaliação de pesquisadores, despreparado para um possível novo surto.
“Eu diria que a gente está numa situação de uma paz que não é muito verdadeira”, afirma Antonio Bandeira, infectologista.
Bandeira é um dos que identificaram o vírus no país pela primeira vez. Foi um trabalho conjunto com os pesquisadores Gubio Soares Santos e Silvia Inês Sardi, que conduziram os testes em laboratório. O médico conversou com a reportagem numa pausa entre as sessões do 24º Congresso Brasileiro de Infectologia, que ocorreu em setembro.
Números atuais estão longe dos mais de 90 mil suspeitos em 2016. Mas o vírus continua circulando por meio do Aedes aegypti e representa um risco. Este ano, até meados de setembro, foram registrados 3.874 casos prováveis; no ano passado, as notificações somaram 5.115, segundo o painel de arboviroses.
O cenário, porém, é subnotificado. Por, geralmente, apresentar um quadro mais leve, a pessoa infectada trata os sintomas em casa ou, quando procura um profissional da saúde, este também minimiza e não faz o teste. Com isso, possíveis casos ficam sem diagnóstico e não entram para a contagem oficial do país.
“Esse número de casos, apesar de baixo, com certeza é maior. Ele não é epidêmico, mas é maior. Só que isso não é muito detectado e como não está chamando a atenção, é deixado de lado”, afirma Bandeira.
“De fato, a zika perdeu importância epidemiológica”, disse o infectologista Kleber Luz. Em uma sessão sobre arboviroses, o professor da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) avaliou que a doença “realmente é uma situação que está por baixo do pano”.
Sem alarde, o vírus circula e é um risco muito grave para gestantes. Quando infectadas, em um terço dos casos os bebês podem nascer com microcefalia, uma má formação no cérebro que aumenta a mortalidade em 11,3 vezes.
“Uma mulher que se torne gestante no Brasil nesse momento tinha que ter muito claro que, do primeiro ao último dia da gestação, ela tem que usar repelente e roupas mais compridas para evitar picada de inseto. A gente, infelizmente, não tem prevenção através de alguma medicação, a gente não eliminou o vetor e a gente não eliminou o vírus”, explica Bandeira.
O DESAFIO DA VACINA
Estudos ainda são introdutórios. Um imunizante em fase 1 de estudo até mostrou resposta positiva, mas em um número muito pequeno de voluntários, sem avanço por enquanto.
Um dos desafios é testar a vacina pessoas grávidas. Elas são o público-alvo, pela possibilidade grave de microcefalia no bebê. “É o grupo mais complicado de fazer pesquisa, de alto risco”, diz Bandeira.
Outra questão é a segurança do estudo. Para avaliar os resultados de uma vacina, seria preciso dividir as voluntárias em grupos: um tomaria o imunizante e outro tomaria uma substância sem efeito (placebo). Mas como o risco de microcefalia existe, seria preciso garantir algum grau de prevenção às gestantes que ficassem sem a vacina em teste, com indicar uso de repelente para evitar a picada do mosquito que transmite o vírus.
Baixo número de casos é positivo, mas também um complicador. “Se tem uma epidemia, tenho como poder calcular um pouco o grau para que a vacina possa funcionar. Se tenho pouquíssimos casos, eles são difíceis de encontrar”, explica Bandeira. “Um estudo desse fica inviável financeiramente.”
“Realmente, não tem perspectiva de a gente vir a ter uma vacina para zika, o que é muito ruim, por que caso surja um novo surto, nós estaremos mais uma vez desarmados”, diz Kleber Luz, professor da UFRN.
Segundo Luz, os estudos para uma vacina foram “definitivamente abandonados”. Mas ele afirma que ainda é preciso estar atento aos sintomas, notificar e acompanhar.
Capacidade de desenvolvimento também é limitada. Bandeira conta que empresas estrangeiras que teriam capacidade para investir na tecnologia não o fazem porque o vírus não é um problema no país onde estão. Por isso, ele defende o desenvolvimento nacional. “A gente precisa deixar de ser colônia, especialmente na área de pesquisa e tecnologia”, disse. “A gente tem que começar a ter pesquisa voltada para as doenças da gente.”
Além do dinheiro, o processo demanda profissionais com alto grau de formação. “Tem que ter uma política no Brasil de atração de cientistas e esse é o melhor momento”, disse o médico.
UM QUADRO DIFERENTE
Em 2014, o país vivia os desafios da recém-chegada chikungunya. A doença foi confirmada no Amapá e na Bahia no segundo semestre de 2014. Na época, Bandeira e seus médicos residentes começaram a atender os casos em Salvador. “Era uma nova realidade, com muitas sequelas articulares”, lembra.
Em meio ao desafio, outra novidade surgiu. No final daquele ano, uma síndrome diferente começou a chamar a atenção dele, bem semelhante a dengue e chikungunya, mas sem que os testes confirmassem as doenças. Em janeiro de 2015, a cerca de 50 km da capital baiana, um surto do novo quadro foi identificado em Camaçari, onde o médico prestava consultoria. A partir dali, começaram a trabalhar com hipóteses.
“A população de Camaçari exigiu que a companhia de águas do estado fizesse uma análise, porque achava que as pessoas estavam ficando empoladas por conta de água contaminada. Mas falei que era outra doença, só não sabia o que era”, afirma Bandeira.
Parceria científica descobriu o vírus zika no Brasil. Num hospital de Camaçari, o infectologista conseguiu autorização para analisar amostra biológica das pessoas infectadas. Na investigação, entrou o trabalho laboratorial dos pesquisadores Gubio Soares Santos e Silvia Inês Sardi, da UFBA, que começaram a testar possibilidades de vírus.
Em 28 de abril de 2015, casos foram confirmados. Bandeira estava num aeroporto da Dinamarca, após um congresso, quando recebeu uma mensagem de Santos avisando que as amostras tinham testado positivo para zika. “Tinha um monte de colegas do Brasil comigo. Fiquei tão animado que eu virei e falei: ‘gente, aquele surto no Brasil é zika vírus’. Todos olharam e disseram: ‘esse cara tomou alguma coisa aqui na Dinamarca'”, relembra.
Vírus já circulava em outros continentes. A doença começou na África e foi se espalhando por Ásia e Oceania até chegar ao continente americano, sendo identificado primeiro no Brasil.
Maioria das infecções não tem sintomas ou são leves, mas há complicações neurológicas. Logo o quadro começou a ser associado à síndrome de Guillain-Barré -onde Bandeira trabalhava, os casos passaram de um para 50 por mês- e microcefalia.