(FOLHAPRESS) – Um dos pontos de venda do novo “Frankenstein” nas telas é tão batido quanto a história que fundou a ficção científica como a conhecemos, publicada em 1818 por Mary Shelley como resultado de um concurso de pesadelos na orgiástica vila de lorde Byron às margens do lago Genebra, ocorrido dois anos antes.
Como a máquina de divulgação da Netflix não nos deixa esquecer, Guillermo del Toro sempre sonhou em filmar a tragédia do monstro nascido de pedaços humanos. Para qualquer conhecedor da obra do cineasta, talvez o mais criativo de sua geração, isso seria desnecessário.
A inadequação e as maravilhas do mundo que escapam a olhos cerrados permeiam toda a filmografia do mexicano, seja com as desventuras da garotinha em “O Labirinto do Fauno” ou no questionamento de lugar no mundo do diabão Hellboy, em especial no segundo episódio com o protagonista.
Certa vez, Del Toro disse que temia filmar um projeto dos sonhos, dado que o ideal despareceria independentemente do resultado. Ele pode dormir tranquilo: embora irregular, seu “Frankenstein” terá lugar de destaque na infindável galeria de obras em torno do objeto.
Isso se deve principalmente a Jacob Elordi, jovem ator sensação de “Saltburn” e “Euphoria”. Trazido às pressas ao projeto, dada a desistência de Andrew Garfield, ele apresenta uma criatura única que, fazendo jus à essência do personagem, é uma amálgama de monstros passados.
A referência mais óbvia é o lado ingênuo e doce do monstro de Boris Karloff no seminal filme de 1931, quando James Whale criou a imagem definitiva da criação do barão Victor Frankenstein. Elordi nasce uma criança adulta, perdida em passos trôpegos e domínio incerto da linguagem.
Seus movimentos e olhar inseguros capturam, numa das subversões do cânone que Del Toro insere, a mocinha da história, Elizabeth, vivida aqui por Mia Goth. Ao contrário do livro e de vários filmes, ela é uma noiva voluntária e desejosa, que se apaixona pela criatura -que mantém os traços do bonitão Elordi sob quilos de maquiagem.
Aqui, há uma correlação com o outro ícone do horror gótico, o conde Drácula, na forma do recente e brilhante “Nosferatu”, curiosamente também projeto de infância do diretor Robert Eggers. Nele, a dama em apuros é quem conjura o vampiro, bem longe do estereótipo de uma vítima inocente.
Elordi também bebe na fonte de Robert De Niro, o motivo para que o “Frankenstein de Mary Shelley” de Kenneth Branagh não tenha sido relegado ao esquecimento. Como aquele monstro, ele rapidamente se torna ciente de que é uma aberração.
A criatura não é só sede de vingança, moderando o uso da força e buscando no fim apenas perdoar o pai para encontrar a paz. A simbologia cristã não deixa dúvida sobre as associações pretendidas: até a geringonça que dá a vida ao monstro tem a forma de uma cruz.
O criador, por sua vez, vive às turras com a influência de seu pai abusivo, o que expõe o perigosamente frágil elo do filme na figura de Oscar Isaac. Vivendo Victor, o ator escorrega para a caricatura do cientista louco em diversas vezes, sendo efetivo apenas em algumas cenas com Goth.
Del Toro dividiu a trama em um dispensável prólogo no Ártico -como no livro e na obra de Branagh- e depois criou um segmento sentimental demais, no qual Victor conta sua história que quase afunda o filme. Ele é salvo e ganha vida, como que atingido por um raio, quando o monstro resolve dar sua versão em primeira pessoa dos acontecimentos.
As camadas são sobrepostas com fluidez pelo mexicano, que entrega o usual espetáculo visual arrebatador, com sets detalhados e ricos em vermelhos e marrons. Só destoa da qualidade da produção o uso de lobos criados por computador, convincentes como uma nota de R$ 3.
Para os aficionados, há “easter eggs” (referências) em abundância -a maioria erudita- como na tocante sequência em que Elordi lê “Ozymandias”, o definitivo poema de ninguém menos do que o marido de Mary Shelley, Percy, sobre a transitoriedade das relações de poder e da vida. Prometeu, que está de forma óbvia no subtítulo do “Frankenstein” original, também dá as caras.
Sem comprometer demais, o diretor sofre um pouco da doença infantil do projeto pessoal, a excessiva reverência ao material de origem. Não que evite desvios: são muitos e, se Elizabeth e o novo papel para o irmão de Victor na trama funcionam, a introdução do personagem do cada dia mais careteiro Christoph Waltz é um erro.
Mas a sensação deixada por Del Toro é a de temor de aprofundar mais radicalmente as inovações no enredo, o que acaba por realçar suas facetas mais convencionais. Resta ver o que a inquieta Maggie Gyllenhall fará com a história em “A Noiva!”, que será lançado em 2026, abordando o tradicional destino que o mexicano poupa a Goth no seu filme.
Ao fim, ele entrega um filme de horror sem horror, a despeito do abundante “body horror”, na forma de uma bela declaração de amor a seu real protagonista –o monstro.
FRANKENSTEIN
Avaliação Bom
Quando Nos cinemas a partir de 23/10
Produção Jacob Elordi, Oscar Isaac, Mia Goth, Christoph Waltz, Charles Dance
Direção Guillermo del Toro