FOLHAPRESS – Ver ou rever o primeiro longa de ficção de Manoel de Oliveira equivale ao êxtase de reencontrar o trabalho de um cineasta de gênio em seu gesto original. A cópia de “Aniki Bobó” da Cinemateca Portuguesa, em ótimo restauro, exibido na Mostra de Cinema de São Paulo, ajuda o espectador a fruir o talento tão particular do artista.

Estamos na cidade do Porto, onde um grupo de crianças pobres vive sua infância. Pode-se pensar em um filme infantil, mas não. Ou não só. Normalmente, o cinema representa a infância como uma deficiência. Poderia rever esse conceito —as crianças se amam e se odeiam como quaisquer adultos, apenas que sem intermediários. Há um estado puro na amizade, assim como no ódio das crianças.

Carlitos sente-se apaixonado por uma bela garota, mas enfrenta um rival poderoso na pessoa de Eduardo. Eduardo é maior, mais forte, mais audaz. Lidera o grupo de meninos e sabe como impressionar a jovem Terezinha.

Temos então o primeiro amor e a primeira rivalidade. Inútil dizer que são sensações pouco profundas: qualquer criança sabe a beleza que o primeiro namoro, a primeira atração, o primeiro desejo de agradar a alguém tem em sua vida.

Qualquer criança sabe, e Oliveira também. Daí seus diálogos não conterem nada de especialmente infantil. Daí a direção de seus jovens atores ser um primor poucas vezes igualado. Entre outras, cada palavra na boca deles soa verdadeira, não como uma imposição de um adulto inepto que dirige o filme.

Completa esse quadro uma montagem exemplar. Dou um primeiro exemplo. Em determinado momento, Eduardo tira o boné para coçar a cabeça. Quantas vezes, umas 200 pelo menos, já vi esse mesmo gesto soar falso. E soa falso porque alguém atrás da câmera ordena que o ator faça tal movimento.

O que acontece em “Aniki Bobó” é especial —o ator se levanta, coça a cabeça uma vez e o gesto se interrompe. Quando ele vai voltar a se coçar, o gesto é interrompido pela montagem. Não precisa ter visto a montagem do filme para perceber que a repetição do gesto denunciaria a falsidade da intenção do ator. Mas Oliveira e seu montador, sabiamente, não deixam que isso aconteça.

Existe um momento mais crítico, que deixa mais clara a extensão do gênio do cineasta português. Quando o trem passa, as crianças costumam se acotovelar numa elevação do terreno para saudá-lo. Em dado momento, todos vão para lá. Apenas Carlitos fica para trás, por causa de alguma maldade que lhe fez Eduardo. Eduardo está lá, é o mais entusiasmado ao ver o trem —saltita, grita, tudo. Carlitos vem por trás, pois está atrasado.

Temos a sensação de que ele poderia empurrá-lo. Sabemos que ele gostaria de empurrar Eduardo monte abaixo. Ele corre naquela direção. Eduardo sempre salta e grita, animado. De repente, bem quando Eduardo está chegando, o vemos escorregar e cair. Mas escorregou e caiu por que foi empurrado? Ou escorregou e caiu bem no momento em que Eduardo chegava?

A dúvida persistirá. No entanto, desde já é claro que filmagem e montagem, ambas perfeitas, trabalharam para que o real e o desejo se encontrassem. Em um segundo, ou menos, as duas hipóteses chegam a nós intactas, como se se provocassem.

Esses dois exemplos bastam para mostrar a precisão e a extensão do trabalho desse autor, embora estejam longe de esgotar o repertório de belezas que nos reserva o filme desse autor que, no futuro, nos encheria de obras-primas —de “Amor de Perdição” (1979) a “O Estranho Caso de Angélica” (2010).

Aqui temos um filme de 1942, estritamente clássico, portanto, e ao mesmo tempo, sempre original, tanto no tratamento de seu assunto como na formulação de uma ética da convivência e da generosidade, sobre a ética da rigidez.

ANIKI BOBÓ

– Avaliação Ótimo

– Quando Mostra de SP: ter. (21), às 16h, na Cinemateca; dom. (26), às 21h20, na Cinesala; qua. (29), às 15h, no Cinesesc

– Classificação Não informada

– Elenco Nascimento Fernandes, Fernanda Matos, Horácio Silva

– Produção Portugal, 1942

– Direção Manoel de Oliveira