SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Temos talvez uns cinco serial killers conhecidos na história italiana, e acredito que isso se deva mais à cultura familiar do que à cultura católica —aqui as pessoas são muito ligadas, é difícil haver pessoas tão isoladas como nos Estados Unidos. Tem sempre mãe, pai, irmão, irmã pedindo satisfação aos familiares, é mais difícil ter esse tipo de atividade”, afirma Stefano Sollima.

Seu parceiro, Leonardo Fasolli, complementa: “Talvez seja também por isso que os serial killers nos fascinam –eles são o mal. E nós, o bem. Nós espectadores, todos nós. Talvez por isso eles nos tranquilizem. Você se sente confortável porque não é o mal.”

Na quarta (22), a Netflix lança “O Monstro de Florença”, uma minissérie de quatro episódios, criada e dirigida por Sollima e Fasolli, produzida na Itália, com atores locais, que revisita um dos casos mais sombrios e enigmáticos do país.

A dupla de “Gomorrah”, de 2014, e “ZeroZeroZero”, de 2019, reabre um mistério que assombra o país europeu há décadas. Entre 1968 e 1985, oito casais jovens foram assassinados em situações muito semelhantes: enquanto transavam em carros estacionados nos arredores de Florença. O autor dos crimes até hoje não foi desvendado, apesar de dois julgamentos muito midiáticos terem acontecido, pessoas terem sido presas e um suspeito ter desaparecido do mapa.

Até hoje não se sabe nem se o tal monstro de Florença era mesmo uma pessoa só. Mas os crimes realmente seguiam um padrão: os tiros eram disparados com uma pistola Beretta calibre .22, e os corpos eram mutilados depois.

Foi a imprensa quem apelidou o autor dos crimes de “Il Mostro di Firenze” —o “Monstro de Florença”, em tradução livre—, transformando-o em um símbolo do mal absoluto, que aterrorizou gerações e virou uma obsessão nacional.

A série, no entanto, é muito diferente de outras produções de true crime em que o assassino é o protagonista. Sollima e Fasolli apresentam, em cada episódio, uma versão da investigação que acaba por inocentar, ou pelo menos levantar sérias dúvidas, a respeito de cada suspeito. É como se cada capítulo fosse a recriação de um ou vários crimes, mas que, no final, mostra como aquela versão não pode ser a definitiva, ainda que a história termine com uma prisão.

“Contamos exatamente o que aconteceu e decidimos usar os nomes verdadeiros. Não podíamos inventar nada —também tínhamos obrigações legais, já que era uma história real. A única decisão criativa que tomamos foi escolher o que não contar, o que omitir, porque incluir tudo deixaria a história muito mais confusa”, explica Fasolli.

Sollima esclarece que a narrativa se concentra nos suspeitos e não nos investigadores: “Decidimos não falar sobre a investigação, nem mostrar as coisas do ponto de vista dos investigadores, mas sim dos suspeitos —dos tais ‘monstros’. E essas pessoas talvez não fossem o Monstro de Florença, pode ser que sim, pode ser que não. As investigações continuam abertas. Os familiares dos dois rapazes franceses continuam a investigar, e muitos não estão satisfeitos com os resultados dos julgamentos. O caso está longe de ser resolvido.”

Fasolli ressalta a importância da precisão histórica: “Não inventamos nada, apenas fizemos a melhor pesquisa possível e organizamos todo o material de maneira que o público possa tirar suas próprias conclusões. Tudo o que se vê na série aconteceu de verdade. Os personagens são retratados conforme aparecem nos documentos oficiais. Não há interpretação —é assim que foi.”

A primeira história apresentada é também a única em que há uma testemunha ainda viva, o menino Natalino, que estava no banco de trás do carro em que sua mãe e seu amante, acreditando que o garoto dormia, começam a transar e foram mortos à queima-roupa.

O pai de Natalino passou a vida preso, condenado pelo duplo assassinato. “Do ponto de vista judicial, o primeiro assassinato, de 1968, teve um culpado reconhecido por lei —Stefano Mele, o pai de Natalino. Mas, na sentença final, o próprio juiz escreveu: ‘Não acreditamos que Stefano Mele seja o culpado, mas, como ninguém mais confessou, presumimos que seja ele'”, conta Sollima.

Natalino, o garoto, passou o resto da infância e da adolescência morando com diversas famílias adotivas e nunca testemunhou oficialmente. “Hoje em dia ele vive com a namorada em uma ocupação, não tem uma casa, nem uma profissão e vive entrando e saindo de clínicas de reabilitação por problemas com drogas e álcool”, conta, desolado, Leonardo Fasolli.

Seu parceiro contextualiza ainda a raridade desse tipo de crime na Itália: “Este caso é o maior e mais importante que tivemos. O livro foi escrito por um autor americano junto com o jornalista italiano Mario Spezi. E, por isso, o caso ficou famoso também nos Estados Unidos. O escritor da série “Hannibal Lecter”, o escritor americano Thomas Harris, também veio à Itália assistir ao julgamento. Foi o maior caso de serial killer da Itália — todo mundo sabia.”

Sobre o que esperam que aconteça quando o mundo assistir à “O Monstro de Florença”, Sollima é categórico: “O que nos move num projeto nunca é o que virá depois — não sabemos se essa história vai ressoar fora da Itália. Nos preocupamos apenas em torná-la compreensível. Nosso único objetivo é contar bem a história que queremos contar, e torcer para que o público goste.”

Fasolli, no final da conversa, que aconteceu no elegante Excelsior Hotel, no Lido, durante o Festival de Veneza, revela sua teoria a respeito do assassino: “Essa história está muito ligada à cultura patriarcal e à forma como os homens veem as mulheres na nossa sociedade —ainda hoje temos um feminicídio por dia na Itália.”

O MONSTRO DE FLORENÇA

– Quando Qua. (22)

– Onde Na Netflix

– Classificação 16 anos

– Produção Itália, 2025

– Criação Stefano Sollima, Leonardo Fasoli