CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Após a queda do Terceiro Reich, muitos nazistas encontraram refúgio em partes remotas da América do Sul. O mais notório deles foi Josef Mengele, temido médico alemão que realizava experimentos desumanos no campo de concentração de Auschwitz e que teria passado boa parte da velhice peregrinando por cidades de São Paulo.

A mitologia que se criou em torno da fuga deste e de outros nazistas inspirou o cineasta russo Kirill Serebrennikov, responsável por um dos grandes destaques da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo deste ano, “O Desaparecimento de Josef Mengele”.

Com exibições na terça (21) e na quinta (23), o longa ainda não tem data de estreia no circuito comercial e, por isso, deve ter sessões disputadas, cinco meses depois de estrear no Festival de Cannes, em caráter especial.

“Eu não tenho fascínio por essa história nem nada, mas tenho minha própria experiência com o mal”, disse Serebrennikov a um grupo de jornalistas durante o festival francês, no qual é habitué e com presença que já foi alvo de protestos, em meio à guerra entre Rússia e Ucrânia.

“A Rússia teve os gulags e o stalinismo, outros tipos de maldade. E eu acho que às vezes temos que lembrar as pessoas dessas coisas terríveis, para que elas não se repitam. As pessoas se esquecem porque é o mais fácil a fazer, ainda mais quando falamos do século passado, que foi terrivelmente tóxico. A reação normal é fechar os olhos e recomeçar, mas precisamos lembrar do passado.”

Superada a relutância do público do festival em receber cineastas russos, Serebrennikov, um dos mais notórios detratores de Vladimir Putin, traça diversos paralelos entre os abusos da Alemanha nazista e aqueles cometidos em sua pátria-mãe, a Rússia, nos anos de União Soviética.

Ele também vê paralelos entre o governo atual de seu país e aquele que levou a Alemanha à Segunda Guerra Mundial. Um pouco antes do Festival de Cannes em que apresentou “O Desaparecimento de Josef Mengele”, Serebrennikov havia falado sobre como os artistas russos, hoje, devem escolher se querem ser como Leni Riefenstahl, cineasta que capturou com lentes homéricas o governo de Hitler, ou Marlene Dietrich, que abandonou a Alemanha quando esta se nazificou.

É um Estado violento e militarizado, diz ele, que chegou a ser preso em 2017 por supostamente desviar dinheiro público que deveria ter sido usado em uma produção teatral. Após 20 meses em prisão domiciliar e mais um ano nos tribunais, o julgamento foi suspenso e ele pediu asilo na Alemanha.

De lá, e dos festivais por onde passa, Serebrennikov segue denunciado o governo de Putin e se defendendo das acusações que enfrentou, alegando ter sido perseguido politicamente.

Trabalhos que vieram depois deste período mexeram no vespeiro, como foi o caso de “A Esposa de Tchaikóvski”, que escancarava a homossexualidade do maior compositor de um país que adota políticas declaradamente homofóbicas.

Por mais que “O Desaparecimento de Josef Mengele” seja uma reflexão sobre a origem do mal e de regimes autoritários, porém, o filme marca um distanciamento de Serebrennikov de sua terra natal, numa tentativa de lidar com o passado da nação que agora o acolhe.

No longa, vemos de passagem algumas das atrocidades cometidas pelo médico nazista em Auschwitz. A trama, porém, se concentra em seus anos de fuga na Argentina, no Paraguai e, por fim, no Brasil —ele morreria no anonimato, aos 67 anos, afogado em Bertioga após sofrer uma parada cardíaca. As cenas latino-americanas foram gravadas no Uruguai, mesmo aquelas em que se fala português.

O longa o mostra como uma pessoa perturbada —mais pelo ostracismo que enfrenta após a queda do Terceiro Reich do que por remorso por seus experimentos com prisioneiros judeus, homossexuais e com deficiência. Culpa é algo que ele não sente, percebemos pelas partes ficcionalizadas do filme e pela seção mais documental, emprestada do livro homônimo de Olivier Guez.

Por isso mesmo, Serebrennikov optou por gravar o longa em preto e branco, com exceção dos flashbacks que levam o espectador para o campo de concentração. Estas cenas são excessivamente coloridas e se desenrolam sob um filtro quase infantil, mesmo que mostrem monstruosidades.

“Tivemos o mesmo na Rússia com o fim do stalinismo. As pessoas que trabalhavam no regime não tinham remorso. Mesmo hoje há quem tenha certa nostalgia em relação a essa ‘mão firme’, à violência do Estado. A violência acaba, muitas vezes, sendo equiparada a poder, a feitos grandiosos”, diz o cineasta, sem citar Putin nominalmente, mas sugerindo que há certo saudosismo em Moscou.

O DESAPARECIMENTO DE JOSEF MENGELE

– Quando Na terça (21), no Multiplex PlayArte Marabá, às 20h30, e na quinta (23) no Reserva Cultural

– Onde 49ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

– Elenco August Diehl, Dana Herfurth, Max Bretschneider, Friederike Becht

– Produção Alemanha e França, 2024

– Direção Kirill Serebrennikov