SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Milton Hatoum finalmente está encerrando a trilogia em que começou a trabalhar há quase duas décadas. Já faz tempo que seus leitores estão pendurados nos mistérios deixados por “A Noite da Espera” e “Pontos de Fuga”. Mas quem está ávido por resoluções do tipo “quem matou Odete Roitman” no novo “Dança de Enganos” não conhece bem o autor.

“É importantíssimo num romance evitar as conclusões, as respostas, as explicações”, diz ele numa conversa em sua casa, cabelos brancos despenteados, com a calma monástica que lhe caracteriza. “Deixo tudo nesse território ambíguo, como areia movediça.”

A grande questão levantada nos dois primeiros livros, publicados oito e seis anos atrás, é onde andava Lina, a mãe do protagonista Martim. A mulher se separou do pai rígido do garoto no começo da história, foi morar longe e passou a dar cada vez menos notícias, virando uma figura rarefeita.

No romance que chega às livrarias nesta semana, a protagonista é ela. Como o filho se envolve cada vez mais na oposição à ditadura e acaba num exílio na Europa, a sensação é que a mãe também vive um thriller político do lado dela, mergulhada na clandestinidade. “Dança de Enganos” mostra que isso é, bem, um engano.

Hatoum aponta que uma de suas obras mais celebradas, “Dois Irmãos”, já deixava uma ponta fundamental solta até o fim. Afinal, qual dos gêmeos protagonistas do livro era o pai do narrador, Nael? Ninguém sabe, nem o próprio autor –ou melhor, cada pessoa pode ter sua própria resposta.

O repórter pergunta se o autor acha que hoje as pessoas esperam que lhes deem na boca literatura mais mastigada. Ele responde que isso sempre houve. E que livros comerciais são importantíssimos, porque formam leitores.

“É necessário que todo país tenha seus bons escritores populares. Mas tenha também escritores e escritoras que não entregam, que trabalham muito o ponto de vista estrutural, formal da linguagem, o que também é válido. E a literatura de um país se constitui dessas duas vertentes. Se pensarmos de maneira excludente, é uma visão quase autoritária.”

Agora, as motivações de Lina para ficar longe do filho nunca ficam talhadas em pedra. E se pensar bem, dá para dizer que a literatura brasileira já se fundava num romance aberto numa dúvida. Quem sabe se Capitu traiu ou não traiu? “E a gente vai atrás do Machado”, diz Hatoum, emendando uma risada breve como um suspiro.

O escritor amazonense de 73 anos segue o caminho de Machado de Assis de mais de um jeito. Há dois meses, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras fundada por ele, aclamado na primeira eleição que disputou. E, já consensuado como um dos grandes escritores do país, chegou até a ouvir rumores de que estava cotado para o Nobel de Literatura.

Quando o repórter levanta esse assunto, ele arregala os olhos e murmura no meio da pergunta que “foi quase um pesadelo”. Diz sem falsa modéstia que, ainda que goste de reconhecimento, fica mais contente em ver jovens leitores e professores trabalhando seus livros. Quando escuta que alguém decidiu ir a Manaus após ler “Cinzas do Norte”, se sente no paraíso.

“Um dia um brasileiro ou uma brasileira vai ganhar o Nobel. Não eu, mas alguém vai. Isso depende de lobby, do Ministério da Cultura. E a gente tem que lembrar que a Academia falha muito. Falhou em não ter dado prêmio ao Drummond, um dos maiores poetas da nossa língua. Ao Guimarães Rosa, porque as traduções são falhas. À Clarice Lispector, ao Jorge Luis Borges, ao Alejo Carpentier”, diz, incluindo um argentino e um cubano na dança de enganos da Academia Sueca.

“Eles olham para o Brasil ou com indiferença ou com olhar exótico. E quem ganhar um dia vai ter que falar isso: vocês erraram.”

Nobelizado ou não, é inegável o zelo que Hatoum dedicou à trilogia “O Lugar Mais Sombrio”, gestada desde 2007, mas sonhada desde os anos 1980, quando ele mesmo se exilou na Europa como seu protagonista. “Para a literatura, você tem que esperar o tempo decantar, se transformar em imaginação.”

O manauara conta que escreveu todos os livros de uma só tacada, e o que veio depois foi um trabalho de lapidação de cada texto em separado, num projeto “não pretensioso, mas ambicioso”.

Sim, os seis anos que separam o segundo volume deste terceiro foram todos de retoques numa trama quase pronta. Hatoum brinca que é “lento por definição”, mas mudou muito os rumos da narrativa –ampliou a história deste livro, que era para ser uma longa carta ao filho, buscando dar espessura a mais personagens.

O público vai entendendo em meio às elipses da obra, vasculhando o que nunca é dito, que Lina é “uma mulher convencional”, nas palavras do autor, “de uma geração que era violentada, massacrada, humilhada” por viver num ambiente opressivo. “Eu tentei trabalhar com a lenta conscientização do corpo, da liberação das imposições patriarcais.”

A explicação do que aparta a mulher de seu filho por décadas não é simples. Há o fator nada banal do ex-marido agressivo com quem ele mora, um braço armado da ditadura já ostensivo nos dois primeiros livros, mas o que vai ficando evidente é a complexidade da relação de Lina com o amor.

“Tem uma força maior dentro dela, que a impede de fazer esse movimento em direção ao filho”, diz o autor, tentando entender a personagem que ele mesmo criou. “Eu posso arriscar que ela intui uma relação edipiana. Toca em coisas, vamos dizer, primitivas. No interdito e, no fundo, no tabu.”

Com outro de seus mestres, o quase nonagenário Raduan Nassar, Hatoum aprendeu a não ter medo de tatear assuntos proibidos como o incesto, sempre de maneira oblíqua, de sugestões nas entrelinhas, porque estamos falando de literatura e não de caça-cliques.

“É um convite para o leitor refletir”, diz, acrescentando que o literário surge sempre mais da exploração do interior que do exterior. “Penso a literatura como uma refração. Quando você coloca uma régua dentro da água, o que era linear distorce. É essa distorção que eu acho que é a ficção.”

Antes de fazer os retratos do autor, a fotógrafa pergunta se ele acha que o nível do leitor está caindo. Hatoum nega. A literatura vai bem, obrigado –mudando e seguindo em frente, como as embarcações que povoam seus romances, com os leitores a bordo e no manche.

“Uma vez perguntaram a Borges como seria a literatura do ano 2000. E ele respondeu: mas eu não sei como será o leitor do ano 2000.”

Dança de Enganos

Quando: Lançamento nesta terça (21) às 19h na Livraria da Tarde, com o autor e o editor Emilio Fraia

Preço: R$ 79,90 (256 págs.); R$ 34,90 (ebook)

Autoria: Milton Hatoum

Editora: Companhia das Letras