SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O número de personagens negros nas telenovelas da Globo aumentou nos últimos anos, mas profissionais brancos ainda são maioria nos folhetins da principal emissora do Brasil. O crescimento é mais expressivo a partir de 2015, quando personagens pretos, pardos e indígenas foram de 12%, no ano anterior, para 19%. Em 2022, o índice foi para 24%, até atingir 37% em 2023, o maior patamar da série histórica, contra 63% de brancos.

Os dados são de pesquisa do Gemaa, o Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa. Vinculado à Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), o instituto analisou 254 produções da emissora produzidas de 1977 a 2023 –englobando todas as exibidas nas faixas das 18h, 19h e 21h, além das diferentes versões de “Malhação”.

O crescimento da diversidade racial nas novelas da emissora busca reverter um passado marcado pela baixa presença de grupos minorizados. Dos 3.363 artistas que apareceram nos folhetins da emissora em quase cinco décadas, 82% são brancos, seguidos por pretos (10%), pardos (6%) e indígenas ou amarelos (1%).

Em nota, a emissora diz que o aumento da inclusão e diversidade são demandas prioritárias. “Em 2024, lançamos o programa de trainee exclusivo para pessoas negras e com deficiência, com cerca de 15 mil inscritos.”

“Era um quadro de branquidade total, em todas as funções sociais reproduzidas na novela”, afirma João Feres Júnior, professor de ciência política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj e um dos responsáveis pela pesquisa. “Por um lado a história tinha a cara do Brasil, do ponto de vista das classes sociais e dos dramas, mas criando um apagamento racial.”

Ainda em nota, a emissora afirma que essa preocupação está evidente nas obras mais recentes. “Nas telas da Globo, pela primeira vez, mulheres negras protagonizaram todas as faixas de novelas inéditas (‘Garota do Momento’, ‘Volta por Cima’ e ‘Mania de Você’), o que se repetiu este ano com ‘Êta Mundo Melhor’, ‘Dona de Mim’ e ‘Vale Tudo’. Em 2024, todas as salas de criação (autores e direção) de novelas tiveram participação de talentos negros.'”

De acordo com Feres, analisar a composição racial da teledramaturgia é útil para entender a imagem que o Brasil quer projetar em âmbito nacional e internacional. “Um país que se representa desse jeito ensina uma pedagogia da exclusão. Isso acaba naturalizando a ausência de pessoas não brancas nos lugares que importam.”

Isso se faz notar na baixa presença de personagens não brancos nas tramas centrais. Entre 1977 e 2023, 92% dos papéis nesses núcleos foram interpretados por brancos, contra 8% de não brancos, número distante da composição racial do país, que tem 56% de sua população formada por pretos e pardos. Já nas tramas paralelas, a proporção de não brancos aumenta para 18%.

Segundo o estudo, o número de personagens não brancos no enredo principal chegou ao seu maior patamar em 2023, quando representaram 21% dos atores e 16% das atrizes dos folhetins. Especialistas consideram, porém, que a mudança não vem acompanhada de protagonismo genuíno ou de bons enredos para eles.

Essa é uma das críticas que sofreu o remake de “Vale Tudo”, em que Taís Araujo deu vida à heroina Raquel. Telespectadores reprovaram a perda de espaço da protagonista nas últimas semanas da trama e o fato de a personagem ter voltado a ficar pobre após ter se tornado empresária, o que não aconteceu com a personagem original, vivida por Regina Duarte, em 1988.

“Esse momento da Raquel voltar a vender sanduíche na praia, confesso que recebi com um susto”, disse a atriz na ocasião à revista Quem. “Para mim, a Raquel ia numa curva ascendente. Aí eu entendi e falei ‘Ok, ela [a autora] está escrevendo uma parte da história'”.

Para especialistas, isso acontece porque a autoria das novelas e os cargos de tomada de decisão continuam brancos. A série temporal do estudo realizado pelo Gemaa mostra a tendência crescente de incorporação de mulheres brancas à função de autoria principal de novelas, caso da trama das 21h comandada por Manuela Dias.

Isso não se observa, contudo, no que toca a desigualdade racial, que permanece praticamente constante ao longo do tempo, com proporções irrisórias, quando não inexistentes, de autores e autoras titulares não brancos, mostra a pesquisa.

“Um roteirista ou diretor negro vai ter outra forma de contar as histórias, em contraste com a reprodução de estereótipos eurocentrados. O protagonista negro vai deixar de ser visto apenas como vítima do sistema ou periférico”, afirma a roteirista Adry Silva, membro da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro.

Para Feres, o aumento da diversidade na emissora é uma tentativa de buscar renovação e se mostrar em sintonia com demandas contemporâneas.

“É o clima da nossa época. Não dá mais para ter esse tipo de branquitude total [nas novelas] sem que ninguém perceba, como acontecia no passado, quando essa questão não era colocada como um problema publicamente.”

A mudança também é um efeito da luta dos movimentos negros para aumentar a diversidade em espaços de poder, segundo Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos, diretor da escola de comunicação da UFRJ, a Universidade Federal do Rio de Janeiro.

De acordo com ele, existe ainda um motivo financeiro para o aumento no número de negros na frente das câmeras. “A própria publicidade vai percebendo ao longo dos anos que ser diverso é muito lucrativo.”

Diante desse cenário, a teledramaturgia teria se diversificado para responder a uma demanda dos anunciantes, que notaram o poder de compra de grupos marginalizados, como pessoas negras e LGBTQIA+.

Santos chama isso de marketing da diversidade. “A sociedade só reclama quando os seus direitos de cidadania foram feridos no consumo. Isso é um reflexo da despolitização e do esvaziamento cultural que sofremos”, diz o pesquisador.

Para ele, outro ponto de atenção é o modo superficial com que as novelas tendem a retratar o racismo. “Isso não vai ser discutido de maneira profunda”, diz ele. “A gente tem que festejar a representatividade, mas as temáticas da sociedade brasileira, como o racismo e a violência, não vão desaparecer porque está todo mundo feliz e representado nas novelas.”