SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – De fundos de investimentos orientados por princípios cristãos a empresas que se definem como biblicamente responsáveis, cresce no Brasil um movimento que une religião com o dia a dia de negócios e investimentos.

A exemplo do que acontece nos Estados Unidos, essa cena corporativa cristã prega que os valores da Bíblia devem ultrapassar as paredes das igrejas para serem incorporados na gestão de companhias e no direcionamento de recursos para determinadas aplicações.

A seleção pode significar desde empresas que tenham cuidados com o meio ambiente, governança corporativa e bem-estar de funcionários até a rejeição da pornografia, do aborto ou de posturas consideradas ofensivas à família, como o ativismo pelos direitos LGBTQIA+.

É um movimento que se tornou relevante no Brasil a ponto de já existir uma empresa que se dedica apenas a classificar companhias com notas que medem o quanto são (ou não) comprometidas com valores bíblicos.

Fundada pelo administrador de empresas Israel Nogueira de Goes, a Tentmakers Invest funciona quase como se fosse uma agência de rating religioso. Seu principal produto é o IBRScore, indicador que identifica uma empresa com aderência a princípios cristãos a partir de diferentes “lentes de excelência”, em uma pontuação que vai de -100 a +100.

“Da mesma forma que os investidores buscam empresas com um P/L [relação entre preço e lucro] acima de determinado patamar, por exemplo, definimos indicadores que compõem a fé, e as olhamos através desses parâmetros”, diz Goes, autor de um livro sobre investimentos biblicamente responsáveis.

Entre os fatores que podem pesar negativamente na nota da empresa estão políticas de incentivo ao aborto, pornografia, apostas, álcool, maconha e tabaco. Do outro lado, possuem impacto positivo ética empresarial, direitos humanos, sustentabilidade e gestão de emissão e resíduos.

Segundo Goes, um exemplo de empresa do lado indesejado da fé é o de companhias de telecomunicações que transmitem conteúdo pornográfico. Na outra ponta, empresas que fazem doações de peso a ONGs, por exemplo, são bem avaliadas.

“Não recomendamos empresas de bebidas alcoólicas, por exemplo, ou de apostas. Um cristão não vai querer ter lucro a partir dessas atividades. Montamos um portfólio de investimentos que não ofende a fé.”

A história do nome da empresa, Tentmakers, ajuda a entender o pensamento dos cristãos que usam as escrituras para nortear a vida corporativa e os investimentos: vem do fato de que o apóstolo Paulo fazia viagens missionárias se sustentando com seu trabalho, que era de fazer tendas.

“O objetivo é trabalhar, servir e adorar com ética e justiça nos negócios, e ter cuidado com os funcionários, pagando não apenas salários justos, mas dando as melhores condições de trabalho”, define Gustavo Ipólito, fundador do GoldStreet, o primeiro fundo de venture capital da América Latina orientado por princípios cristãos.

O fundo direciona recursos para startups e empresas emergentes com alto potencial de crescimento, e atualmente possui R$ 1 milhão investido em oito empresas que seguem valores bíblicos.

Ipólito dá o exemplo de uma empresa do portfólio do Goldstreet, a Hope+, que vende planos de saúde empresariais de baixo custo, em que um dos serviços oferecidos é o suporte de um capelão. “Extrapola um apenas o serviço e tem influência também espiritual.”

O banco H&S Bank, ainda em construção, é outro caso: a instituição financeira oferecerá produtos com propósito, como um fundo de previdência voltado a pastores missionários.

Ipólito diz que o objetivo do movimento é deixar de separar o que é sagrado do secular. “O que fazemos hoje é quebrar essa dicotomia. Em religiões como o judaísmo, não há diferença de postura no trabalho e em uma sinagoga”, exemplifica. “Mas o cristianismo acaba fazendo essa separação.”

De acordo com ele, o movimento não tem a chancela de determinadas denominações religiosas. “É evangelho puro, sem dogmas de igrejas. Aplicamos o que está na Bíblia. Os conceitos ESG, por exemplo, vêm desde o início do cristianismo, com atenção ao meio ambiente, lisura, transparência.”

A construção desse ecossistema também passa por iniciativas que apoiam empreendedores desde a criação de empresas, como a aceleradora de negócios Bluefields, que nasceu no porão de uma igreja presbiteriana em São Paulo.

“Pensamos: como aplicar conceitos cristãos que ouvimos no domingo de segunda a sexta? Assim surgiu a Bluefields”, relata Paulo Humaitá, fundador da empresa, que já incentivou 300 negócios de tecnologia. “Nossa política é de valorizar pessoas, ter uma boa cultura de trabalho, com bons valores.”

Entre os valores cristãos, ele aponta o que chama de liderança servidora. “É liderar como Cristo liderou. Jesus era um líder servidor, que serve as pessoas, que se preocupa com o bem estar, com o desenvolvimento das pessoas. Que empresário não se beneficiaria disso?”, questiona.

Esse conceito já forma inclusive lideranças empresariais cristãs, como Victor Reis, fundador do Grupo MedMais, especializado em emergências aeroportuárias, que se define como a primeira empresa biblicamente responsável de Brasília, no Distrito Federal.

Ele é criador da Comunidade Reis, grupo de networking de empresas cristãs que afirma ser formado por pessoas “que decidiram ser reis do próprio destino e não vítimas das circunstâncias”.

“Quando um líder aplica princípios bíblicos, ele toma decisões mais justas, lidera com amor e visão, e constrói negócios sólidos que vão além do lucro, gerando legado. A fé dá propósito e a performance garante que esse propósito se manifeste em resultados práticos e mensuráveis.”

O movimento, ainda em consolidação no Brasil, tem um espelho maduro nos Estados Unidos. Lá, a estimativa é que haja meio trilhão de dólares em investimentos em fundos religiosos e fundos de pensão, segundo estimativa da agência de notícias Bloomberg.

Estudos feitos nos EUA para comparar a rentabilidade desses fundos com investimentos tradicionais variam nos resultados: alguns mostram rentabilidade menor pelo fato de haver um universo mais restrito de aplicações disponíveis; outros apontam para resultados junto com a média do mercado.

Mas o tema traz polêmicas muito mais sérias. No início do ano, ficou conhecido o caso da GuideStone Funds, uma gestora de investimentos cristã que administra US$ 24 bilhões em ativos e que pressiona grandes corporações a abandonarem o engajamento em causas LGBTQIA+ e saúde reprodutiva.

Goes afirma que questões como a defesa dos direitos LGBTQIA+ não costumam entram nas análises da Tentmaker. “Mas se a empresa obriga as pessoas a não declararem sua fé, expressando suas posições, isso não é positivo. Mas hoje acabamos entrando muito pouco nessa seara”, diz. “Nossas lentes são mais inclusivas do que exclusivas.”