SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Sempre um bom atrativo na programação da Mostra é a seleção de clássicos restaurados. Neste ano, dois desses filmes comemoram 50 anos. Há entre eles uma relação de similaridades e muitas oposições.
Um deles é o indiano “Sholay”, de Ramesh Sippy, da chamada Bollywood. O outro tem um título imponente: “Crônica dos Anos de Fogo”. É um longa argelino, vencedor do Festival de Cannes de 1975, dirigido por Mohammed Lakhdar-Hamina.
A principal similaridade entre eles é que, quando falamos de cinema indiano e cinema africano, muitas vezes ignoramos que a África é um continente e que a Índia é uma nação continental, com enorme diversidade cultural, linguística e genética.
Outra coisa em comum é que os dois filmes têm aproximadamente três horas de duração. “Sholay” tem um pouco mais que isso, “Crônica dos Anos de Fogo”, um pouco menos.
São opostos principalmente em duas coisas: pouco se conhece do cinema argelino enquanto o cinema indiano é bem mais conhecido internacionalmente. Prova disso é que, mesmo ganhando a Palma de Ouro em Cannes, o filme argelino continua pouco falado e estudado e seu diretor segue virtualmente ignorado nos círculos de história do cinema.
A segunda oposição é que o filme indiano chega ao político pelo entretenimento e o argelino chega ao entretenimento pelo político, o que jamais foi um caminho fácil comercialmente falando.
Se “Crônica dos Anos de Fogo” tem mais a “cara” da Mostra, com sua seriedade e a poesia no encadeamento de imagens, o estilo e a vibração do filme indiano devem conquistar os cinéfilos abertos à diversidade cultural.
Pode-se dizer que “Sholay” é tão ocidentalizado quanto os filmes de ação atuais dos cinemas indianos. Mas não se pode ignorar que a cor local está presente e, de todo modo, há uma singularidade nessas imitações.
No começo, a música, a paisagem e os cenários remetem aos faroestes spaghetti que a Itália fazia aos montes desde os anos 1960. A linguagem do cinema, já dizia Jacques Rivette, é uma só, a da mise-en-scène. Mesmo quando posta em questão, é ela que reina em filmes de todas as geografias.
A trama mostra dois criminosos simpáticos, contratados por um chefe de polícia aposentado para vingar o assassinato de sua família pela gangue do facínora Gabbar. Eles tiram cara ou coroa, prática constante da dupla, para decidir se aceitam ou não a missão.
Um amor muito forte os une, o que rende momentos tocantes, principalmente por serem interpretados por dois dos maiores astros do cinema hindi: Dharmendra e Amitabh Bachchan.
Hindi é a língua mais falada no país e a oficial do governo indiano. O que significa um cinema mais comercial, para grande público, em contraposição ao bengali, por exemplo, marcado pelo cinema paralelo de Satyajit Ray e Ritwik Ghatak, ou ao malaiala, da região de Kerala, também associada a um cinema mais artístico, de Adoor Gopalakrishnan e G. Aravindan.
Nesse desejo de atingir um público amplo, os filmes hindi, identificados pelo nome de Bollywood (entre várias “woods” existentes na Índia) costumam ser bem longos, com muita ação, muitas cores, muitas músicas, danças e humor popular.
Os elementos desse humor costumam ser insanos, e frequentemente caem no politicamente incorreto – que não existia na época, obviamente. Há, por exemplo, um diretor de presídio cujo bigode e o modo de falar remetem a Hitler. É um homossexual cheio de trejeitos comuns à representação da homossexualidade naqueles tempos.
Em alguns momentos, Siipi usa o recurso da câmera acelerada, sempre um truque certeiro no burlesco. Lembra um cruzamento entre “Os Trapalhões” e os filmes da dupla Terence Hill e Bud Spencer.
Por isso chega a ser ousado, dentro desse registro, a inserção de alguns flashbacks, nem sempre de um modo didático. Isto certamente traz algum refinamento à narrativa, mostrando que não se pode subestimar um filme indiano de sua fase de ouro -dos anos 1950 aos 1980.
Ao mostrar um combate que envolve preconceito, injustiça social e um povo subjugado por um vilão predador e ganancioso, “Sholay” nos lembra que uma forte voltagem política não precisa ser explícita para ter efeito. Pode-se atingi-la por meio do espetáculo.
“Crônica dos Anos de Fogo” é um filme abertamente político, um período da história passada a limpo. Vemos o ambiente e alguns processos que levaram à Guerra da Argélia e ao desejo de se tornar uma nação independente da colonização francesa.
Nesses tempos, um homem, Ahmed, começa a se revoltar com a situação de seu povo. Anos depois, ele irá influenciar seu filho a não aceitar calado as injustiças do mundo. As imagens do menino correndo pelo espaço aberto ou entre as pedras são bem marcantes.
Embora exista uma passagem do tempo, a divisão em capítulos não fragmenta muito o relato. Ela serve mais para marcar essa passagem e nos mostrar um crescendo no sentimento que levou ao início da guerra contra o coloniz ador opressor, em 1º de novembro de 1954.
É um primor, por exemplo, a montagem de imagens de arquivo que dá conta do desenrolar da Segunda Guerra Mundial até o seu fim, com a chuva de papel picado na libertação de Paris.
Em outros momentos, a montagem passa de uma ação à consequência daquela ação sem qualquer cerimônia. São cortes ousados para um filme que se propõe um panorama histórico de grande alcance.
O próprio diretor interpreta um personagem, Miloud, tido como cronista e profeta, que entende a marcha da história, o que está para acontecer, além de representar a consciência do povo argelino.
Lakhdar-Hamina sabe inflar o relato com um forte estilo baseado também na movimentação da câmera, nas composições com um conjunto de pessoas em meio às edificações de pedra, na música que impõe um caráter épico e grandioso. Ou seja, faz cinema político, mas não deixa de lado o espetáculo.
Crônica dos Anos de Fogo
Quando: 27/10, às 16h15, no Reserva Cultural; 28/10, às 20h30, na Cinemateca Brasileira
Classificação: Não indicada
Elenco: Yorgo Voyagis, Larbi Zekkal e Cheikh Nourredine
Produção: Argélia, 1975
Direção: Mohammed Lakhdar-Hamina
Avaliação: Muito Bom
Sholay
Quando: 18/10, às 19h25, no Playarte Marabá; 24/10, às 13h00, no Reserva Cultural; 29/10, às 19h50, no Espaço Petrobras
Elenco: Sanjeev Kumar, Dharmendra e Hema Malini
Direção: Ramesh Sippy
Avaliação: Muito Bom