SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Kristalina Georgieva perde o sono à noite de vez em quando.

A chefe do FMI (Fundo Monetário Internacional) confessou a insônia na última quinta-feira (16), na reunião anual da organização em Washington, nos Estados Unidos. O FMI está preocupado com os riscos crescentes nos mercados de crédito privado, que têm suscitado temores de que há uma bolha que pode estourar na maior economia do mundo.

O colapso abrupto da First Brands Group foi o sinal vermelho para a economia global. A fabricante de peças automotivas entrou com um pedido de proteção contra falência no fim de setembro, com credores preocupados com a falta de transparência sobre o balanço patrimonial da companhia. Enquanto parte dos passivos bilionários da empresa é com bancos tradicionais, outros bilhões de dólares estão em dívidas “fora do balanço” -vindos do pouco regulado setor de crédito privado dos Estados Unidos, em crescente expansão.

O tamanho desse mercado gira em torno de US$ 1,5 trilhão e US$ 2,1 trilhões, segundo o FMI em 2024, e três quartos desse mercado está nos EUA.

O caso da First Brands Group segue a esteira do pedido de falência da financeira de automóveis Tricolor, também apoiada por crédito privado, em meio a alegações de fraudes.

A suspeita é que esses casos não são isolados. “É por isso que pedimos mais atenção às instituições financeiras não bancárias”, disse Georgieva a repórteres, sugerindo que o setor deveria ser melhor supervisionado. “Essa questão me tira o sono de vez em quando.”

O FMI, afirmou ela, está preocupado com a mudança “muito significativa” do padrão de financiamento, antes concentrado no setor bancário e agora pulverizado em instituições financeiras não bancárias que não são tão rigorosamente regulamentadas quanto os bancos.

As duas inadimplências seguidas, na análise do estrategista do Bank of America, Patrik Gupta, destacaram “potenciais falhas e desafios na avaliação de crédito”. Isto é, o mercado passou a entender que o setor de concessão de crédito privado está permeado por negócios apressados e análises superficiais, inspirando dúvidas sobre a estabilidade e a confiabilidade desse mercado.

O coro de cautela engrossou após novos casos de perdas milionárias em dois bancos regionais dos Estados Unidos, sem relação com a quebradeira na indústria automotiva. Os dois emprestaram dinheiro a empresas que, segundo eles, os fraudaram.

O primeiro foi o Zions Bancorporation, que espera perder US$ 60 milhões como resultado de dois empréstimos comerciais e industriais. O segundo foi do Western Alliance, que não divulgou o tamanho do rombo, mas informou que “iniciou uma ação judicial alegando fraude por parte do mutuário”. Por isso, afirmou que agora tem mais empréstimos em risco de calote.

“Os casos aumentaram a preocupação de investidores de que talvez o mercado de crédito americano possa estar em dificuldades, que a qualidade do crédito não esteja muito boa e que o setor financeiro, em particular os bancos, possam acumular prejuízos se tiverem dificuldades de recuperar o valor financiado às empresas do país”, diz Leonel Mattos, analista de inteligência de mercado da StoneX.

A cautela se impôs na quinta-feira: apelidado de “índice do medo”, o VIX subiu 22,6% e chegou a 25,3 pontos, o maior patamar desde abril, mês do tarifaço do presidente Donald Trump.

As ações de bancos derreteram. O índice bancário regional KBW dos EUA fechou em queda de 6,3% na quinta, ditando o humor do início do pregão de sexta-feira nos mercados globais. O Deutsche Bank e o Société Générale caíram mais de 5% na Europa, por exemplo.

Os casos lembram investidores da quebra do Silicon Valley Bank, há dois anos, cujo colapso derrubou também o Signature Bank. “A preocupação com risco de crédito e inadimplência é ainda maior considerando o passado recente dos Estados Unidos, desde a crise financeira de 2008 até a quebra do Silicon Valley Bank. O sistema bancário é totalmente interligado, e acaba que temos um efeito dominó: quando um banco quebra, outro quebra em seguida. Daí o receio do mercado, dado o passado recente”, diz Ian Lopes, economista da Valor Investimentos.

Os temores do mercado também têm fundamentos em comentários do presidente-executivo do JPMorgan Chase, Jamie Dimon, no início da semana. Em uma cutucada ao mercado de crédito privado, visto há um tempo com ceticismo pelos bancos tradicionais, ele afirmou: “Quando você vê uma barata, provavelmente há mais, e, portanto, todos devem estar prevenidos”.

Após o comentário, participantes do mercado começaram a questionar se o maior banqueiro dos EUA vê sinais de problemas mais amplos, que não são visíveis para os outros.

Georgieva, do FMI, disse que a organização segue “muito atenta” aos sinais, mas, “até agora, não foram avistadas muitas baratas”.

As tensões se dissiparam em parte no início da tarde desta sexta-feira. O assessor econômico da Casa Branca, Kevin Hassett, disse que os bancos têm amplas reservas e que ele está otimista de que os mercados de crédito estão estáveis. As autoridades do governo Trump, lideradas pelo secretário do Tesouro, Scott Bessent, e Michelle Bowman, do Federal Reserve, estão “limpando as coisas agora”, disse ele, sem fornecer mais detalhes.

Ajudando a aliviar o clima, Clayton Triick, executivo da Angel Oak Capital Advisors, afirmou ao Wall Street Journal que os casos de fraude parecem isolados, “sem necessariamente apontar para fragilidades profundas” no setor.

Triick também afirmou que, por causa do “shutdown” do governo nos Estados Unidos, a falta de divulgação de dados econômicos contribui para amplificar o sentimento de pânico entre os investidores, que não têm muito onde se apegar sem a referência dos números oficiais.

Sintoma do alívio, o VIX recuou 17% nesta sexta. A recuperação do mercado também se traduziu nos índices acionários de Wall Street, que fecharam no positivo. Bons resultados trimestrais de bancos regionais também aliviaram as tensões, entre eles Truist Financial (+3,67%), Fifth Third Bancorp (+1,31%), Regions Financial (+0,99%) e State Street (-1,40%).

Ainda assim, os mercados seguem vigilantes.