SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Farmácia da Natureza, em Jardinópolis, no interior de São Paulo, é uma iniciativa pioneira que funciona há quase três décadas. Muito antes da existência de políticas públicas para fabricação e uso de fitoterápicos, o programa, da instituição filantrópica Casa Espírita Terra de Ismael, já cultivava plantas medicinais e produzia remédios para a população.

Hoje, a farmácia oferece tratamento gratuito para ansiedade, inflamações e problemas gástricos a partir de plantas cultivadas em um horto próprio de cinco hectares.

O modelo bem-sucedido inspirou o programa nacional Farmácia Viva, que abrange todas as etapas da cadeia produtiva de um fitoterápico, em uma única unidade. Isso inclui o cultivo e a colheita das plantas, o processamento, a manipulação e a distribuição do produto final a pacientes. Neste ano, o Ministério da Saúde diz ter investido R$ 30 milhões na implementação dessas unidades pelo país. A meta é atingir todos os municípios brasileiros até 2027.

Um dos maiores desafios da fitoterapia no SUS é a baixa adesão de médicos da rede em prescrever os tratamentos o que, segundo especialistas, se deve a preconceitos.

Para contornar o problema, a Farmácia da Natureza criou um ambulatório próprio com uma equipe de oito médicos voluntários, responsável por realizar mais de 1.500 consultas gratuitas por ano.

O sucesso do projeto vem de uma aliança entre sociedade civil, comunidade científica e gestão pública. Em parceria com a Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, o sítio de Jardinópolis cultiva 400 espécies, produz 150 formulações e faz estudos clínicos próprios de eficácia.

“Temos um estudo clínico com o pó das folhas de Aloysia polystachya, conhecida como burrito ou erva-luísa, que demonstrou eficácia para ansiedade”, diz Fábio Carmona, coordenador da Farmácia da Natureza.

Em Ipatinga (MG), o impacto da Farmácia Viva local foi validado por meio de um estudo realizado em parceria pela prefeitura, a Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto) e a UFV (Universidade Federal de Viçosa).

A pesquisa, que analisou os registros de entregas de medicamentos do sistema de saúde ao longo de sete anos, revelou, por exemplo, que a introdução de uma tintura de Passiflora edulis (maracujá) reduziu em até 36% a prescrição de ansiolíticos controlados.

Apesar dos avanços, a expansão nacional enfrenta dificuldades. Enquanto modelos como o de Jardinópolis prosperam no Sudeste, no Amazonas o desenvolvimento é travado por dificuldades logísticas e falta de apoio técnico aos produtores locais de comunidades tradicionais, que detêm o conhecimento ancestral sobre as plantas.

Um mapeamento da Fiocruz identificou 457 serviços de fitoterapia no Brasil, com concentração de mais de 60% nas regiões Sul e Sudeste.

Dados mais recentes do Ministério da Saúde apontam que a prática já alcança 1.757 municípios, com os registros de uso saltando de 500 mil em 2023 para 562 mil em 2024.

O debate sobre a prática, contudo, divide a comunidade médica. O psiquiatra Marcelo Allevato, da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), defende cautela.

“Intervenção médica não pode ter torcida. Você tem que avaliar o que existe de evidência”, diz, destacando que muitos fitoterápicos carecem de estudos robustos e que seu uso pode atrasar o diagnóstico de transtornos mais graves.

Da mesma forma, a origem natural dos medicamentos não significa que eles sejam livres de efeitos colaterais e possam ser usados indiscriminadamente.

O futuro da prática no SUS dependerá, segundo os dados, da capacidade do sistema de adaptar a política nacional às diversas realidades regionais, unindo saber tradicional e validação científica.

Esta reportagem foi produzida durante o 10º Programa de Treinamento em Jornalismo de Saúde da Folha de S.Paulo, patrocinado pelo Laboratório Roche e pelo Einstein Hospital Israelita.