FOLHAPRESS – O boxe é comumente retratado como um território masculino, mas Rita Bullwinkel transporta adolescentes para esse universo no livro “Porrada”. A autora vai além da inversão de gênero, propondo uma reflexão sobre como o esporte é atravessado por uma lógica patriarcal que molda expectativas e corpos.
Meninas ainda em formação são avaliadas em sua capacidade de corresponder a padrões de força, velocidade e resistência. Não se trata de sexualização, mas a autora mostra como há uma vigilância que submete os corpos femininos a um ideal de performance historicamente associado ao masculino.
Em um dos capítulos, a personagem Rachel reflete sobre como “ser uma boa menina é muito, mas muito pior do que ser um bom menino”. O pensamento dá o tom da narrativa: não basta vencer no ringue, é preciso lidar com todas as pressões de saúde mental.
O boxe já inspirou diferentes produções com mulheres como protagonistas. “Menina de Ouro”, vencedor do Oscar em 2005, é talvez o exemplo mais conhecido. Dirigido por Clint Eastwood e roteirizado por Paul Haggis, o filme adapta para as telas a obra de F.X. Toole, um ex-instrutor de boxe. Ainda que traga uma mulher no centro, a construção é marcada por olhares masculinos.
Mais recentemente, a biografia da lutadora americana Christy Martin, baseada em livro coescrito por ela, foi levada ao cinema no filme “Christy”, de David Michôd, com Sydney Sweeney e ainda inédito no Brasil.
Neste ponto, “Porrada” se diferencia por de fato partir de uma perspectiva feminina. Bullwinkel vai além de demonstrar conhecimento técnico do boxe, descrevendo golpes, estrutura corporal e movimentos no ringue.
O foco está em oito jovens que disputam o campeonato Filhas da América na cidade de Reno, com modos distintos de olhar para si mesmas e suas adversárias. Andy Taylor, por exemplo, carrega a culpa de não ter recebido o treinamento adequado como salva-vidas e ver um garoto morrer afogado sob sua supervisão. Artemis Victor lida com o peso de ser herdeira de uma linhagem de boxeadores, obrigada a vencer para manter o legado familiar.
Rachel Doricko, única menina entre seis irmãos, busca reconhecimento onde sempre foi invisível, enquanto sua oponente Kate, apoiada pelos pais, só deseja ser boa em algo no boxe ou fora dele. Tanya Maw revive, a cada luta, o abandono da mãe. Rose Mueller carrega as marcas do bullying que sofreu em uma escola católica, sem que isso abale sua fé.
Bullwinkel usa a repetição como recurso narrativo, reforçando a todo instante como os traumas rondam a mente das competidoras a cada golpe dado ou recebido. Essa escolha, de certo modo, parece reduzir as personagens às próprias cicatrizes. Ainda assim, a reiteração funciona como estratégia para expor a complexidade da mente feminina diante da dor e das pressões sociais.
Finalista do prêmio Pulitzer, “Porrada” alterna entre uma voz onisciente e os pensamentos das lutadoras. O estilo pode não agradar a todos, mas dá ritmo e profundidade à leitura.
Dentro do sistema capitalista e patriarcal, a competição é vista como inevitável ainda mais quando oito adolescentes são postas lado a lado em um campeonato, observadas e julgadas da ponta do pé até o fio de cabelo. Quando se tem essa idade, perder uma competição pode parecer um veredito sobre toda a vida. Mas conforme a maturidade chega, as coisas mudam de perspectiva e outras batalhas ganham mais relevância.
Bullwinkel não quer deixar o leitor curioso, então oferece vislumbres do futuro dessas jovens. Uma delas será uma boxeadora de sucesso, outra atriz; uma não conseguirá segurar uma xícara na velhice por causa de lesões do pugilismo, e algumas nem sequer se lembrarão do campeonato Filhas da América.
Mas ele continuará acontecendo ano após ano, colocando o boxe como meta de idealização de outras jovens que almejam uma carreira no esporte.
PORRADA
– Avaliação Bom
– Preço R$ 82,90 (192 págs.); R$ 62,90 (ebook)
– Autoria Rita Bullwinkle
– Editora Todavia
– Tradução Marcela Lanius