SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A violência é a língua de Travis Bickle, personagem encarnado por Robert De Niro em “Taxi Driver”. Sua ira representou uma geração que, nos anos 1970, presenciou a morte do sonho americano, açoitado pela Guerra do Vietnã e pela crise econômica. O ressentimento de Bickle, porém, espelhava também a solidão de Martin Scorsese -na época já um diretor respeitadíssimo e solitário na mesma medida.
É o que conta, aos 82 anos, o próprio cineasta, um dos mais importantes do mundo ainda em atividade. De forma inédita, Scorsese compartilha suas memórias com a câmera em “O Lendário Martin Scorsese”, minissérie da Apple TV+ dirigida por Rebecca Miller, que estreia nesta sexta-feira (17) e também será exibida durante a 49ª Mostra de Cinema de São Paulo.
Logo ele, mestre em extrair emoções nem sempre tão bonitas de personagens durões, é incentivado a divagar sobre suas motivações pessoais por trás de alguns dos títulos mais valiosos de Hollywood, de “Taxi Driver” a “O Lobo de Wall Street”. Mais do que bastidores saborosos, a série mostra como o interesse em desvendar a maldade humana e o conflito entre violência e espiritualidade estão ligados à infância no subúrbio italiano de Nova York.
“Todos os seus trabalhos voltam para aquela vizinhança, aquela família”, diz Miller, por videochamada. A diretora, que também filmou um documentário sobre o próprio pai, o dramaturgo Arthur Miller, estava decidida em capturar o lado mais íntimo de Scorsese, que até então só havia falado para as câmeras sobre sua paixão, o cinema, em documentários autorais e, neste ano, para estrear como ator na série “O Estúdio”.
Um dos relatos trata do isolamento que sentia nos primeiros anos de sucesso, durante as gravações de “Taxi Driver” -seu primeiro filme autoral bancado por um grande estúdio hollywoodiano. Apesar de ser sociável e ter bons amigos na indústria, como Brian De Palma e Steven Spielberg, que conheceu em festas que ia quando chegou a Los Angeles no começo dos anos 1970, ele diz, quase como um desabafo, que a dificuldade em criar conexões reais o fazia sentir deslocado.
Sua ambição em fazer cinema levou ao fim de seu primeiro casamento com Laraine Marie Brennan. O diretor não foi um marido exemplar ou um pai presente para as duas primeiras filhas –um traço biográfico comum entre homens de sua geração.
Uma provável herança da Elizabeth Street, rua onde cresceu em Nova York. Em prédios povoados por imigrantes italianos e seus filhos, não sobrava espaço para sentimentos. Os meninos logo aprendiam as regras da masculinidade, e brigavam nas ruas, enquanto as mulheres gritavam. Mostrar vulnerabilidade era perigoso. “Me lembro do drama extraordinário daquele mundo”, diz Scorsese.
Certa vez, ele viu seu pai apanhar de um capanga. O vazio deixado pelas instituições era ocupado pelas famílias mafiosas e, mesmo quem não era criminoso, deveria responder a uma delas. O pai de Scorsese e seu agressor respondiam a famílias rivais.
Ainda menino, ele contraiu asma, e eram as salas de cinema que tinham ar-condicionado no verão. Ali, ele respirava melhor. Quando cresceu, foi pelo cinema que encontrou a possibilidade de expurgar as dores e delícias de seu mundo, contrariando a máxima de sua mãe para a boa vizinhança na Elizabeth Street –“se você ver algo, não diga nada”.
Após longas criados ainda na faculdade, como “What a Nice Girl Like You Doing in a Place Like This?”, de 1963, e “It’s Not Just You, Murray! –que bebia da nouvelle vague e dos beatniks–, veio “Caminhos Perigosos”.
O filme sobre um jovem rebelde e católico no subúrbio italiano, primeira encarnação de Robert De Niro pelas lentes de Scorsese, ganhou manchetes na seção de cultura dos jornais. O jovem diretor era chamado de prodígio do cinema independente por filmar, com destreza, a realidade da Little Italy, bairro da comunidade italiana em Nova York.
Posteriormente, o mesmo tema seria desenvolvido, com matizes diferentes, em épicos como “Os Bons Companheiros” e “Casino”. Para Miller, a diretora, não dá para limitar Scorsese a um autor de filmes gangster. “Ele começou contando histórias sobre onde veio para mostrar a verdade [do lugar]. Mas, depois, seu interesse foi penetrar mundos.”
Logo após “Caminhos Perigosos”, de 1974, Scorsese faz “Alice Não Mora Mais Aqui”, a pedido de Ellen Burstyn, que venceu o Oscar pela sua performance no filme sobre uma mãe solteira que viaja pelos Estados Unidos com o filho em busca de seu sonho. Na época, o filme chegou a ser elogiado pelo diretor francês Jean-Luc Godard, considerado difícil de agradar -especialmente por filmes de Hollywood.
Em seu longa mais recente, ainda, “Assassinos da Lua das Flores”, Scorsese expurga a culpa americana pelo massacre dos indígenas osage com um épico faroeste protagonizado por De Niro, Lily Gladstone e Leonardo Di Caprio.
Este último marca, aliás, uma nova fase na filmografia do diretor que comçou na virada do milênio, com “Gangues de Nova York”, de 2002. “Marty é um mestre em explorar o lado obscuro da condição humana”, diz Di Caprio, na série. Jodie Foster, Spike Lee, De Niro e De Palma são alguns dos entrevistados de Miller, além do próprio Scorsese.
Ao analisar a intimidade de Scorsese, a diretora faz também um retrato da Nova Hollywood, época áurea para o cinema americano, quando os grandes estúdios decidiram enfrentar a crise das bilheterias, contratando uma nova geração de cineastas que não temia a experimentação.
“Fazer cinema independente é difícil. Aquele foi definitivamente um momento único, porque Hollywood tinha perdido a confiança na sua capacidade de tocar a cultura da juventude. E começaram a olhar para esses jovens cineastas, a ensiná-los como alcançar o público. E, por um minuto, eles tinham um poder imenso”, diz Miller. Ao lado de Scorsese, surgiram nomes como Woody Allen, Francis Ford Coppola e Steven Spielberg.
“Nos anos 1980, os estúdios se tornaram um aparato de bancos”, diz Miller. A baixa criativa sintonizou com anos de fracasso de bilheterias para Scorsese, que se recuperou no final da década com “A Cor do Dinheiro” e, depois, com “Os Bons Companheiros”.
Após biografar Scorsese em cinco episódios, Miller se diz otimista quanto ao futuro do cinema independente. “Sabemos fazer filmes muito bem, e há estúdios que ainda tomam riscos”, diz. Um bom presságio do qual Scorsese se tornou porta-voz em tempos de crise das salas de cinema frente ao streaming. Em entrevistas, aparições públicas e até vídeos do TikTok com a neta, ele, que se aproximou da fé católica nos últimos anos, espalha a palavra do cinema como um devoto.
O Lendário Martin Scorsese
Quando A partir de 17/10
Onde Disponível na Apple TV+Classificação 18 anos
Produção Estados Unidos, 2025
Direção Rebecca Miller