BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O Tesouro Nacional botou o pé no freio na oferta ao mercado de NTN-Bs (Notas do Tesouro Nacional – Série B) para enfrentar a crise em torno desses títulos públicos, que contam com rendimento atrelado à inflação (IPCA) e prazos de vencimentos mais longos da dívida do governo brasileiro.

A derrubada da MP (Medida Provisória) de aumento de impostos pela Câmara dos Deputados não afastou os problemas que o Tesouro têm lidado para vender as NTN-Bs devido à pressão nas taxas provocada pelo crescimento cada vez maior da oferta das debêntures de infraestrutura –títulos de dívida emitidos por empresas para captar recursos para financiar projetos como estradas, ferrovias e saneamento.

A tendência é de continuidade dessas distorções com o cenário atual de superciclo de investimentos em projetos de infraestrutura, que deve levar a mais emissões desse tipo de título privado, de acordo com técnicos do governo e especialistas do mercado financeiro.

As debêntures incentivadas garantem ao investidor a isenção do Imposto de Renda, enquanto o aplicador em títulos do Tesouro paga uma alíquota que varia de 15% a 22,5%.

Na MP, o governo tentou acabar com a isenção do IR para as debêntures de infraestrutura e outros títulos isentos, como LCA e LCI, propondo uma alíquota de 5% na tentativa de diminuir a diferença de taxação em relação às demais aplicações, incluindo títulos públicos, que teriam uma alíquota única de 17,5%.

A edição da MP e a expectativa de fim da isenção em dezembro geraram também um movimento de antecipação das emissões de novas debêntures incentivadas, o que agravou o problema para o Tesouro na gestão da dívida pública. A medida provisória acabou perdendo a validade, mas o problema continua.

Nos últimos leilões, a quantidade de oferta de NTN-B tem sido pequena (50 mil títulos), em contraste às ofertas de setembro, quando foram ofertados lotes de 150 mil e 750 mil títulos. No jargão do mercado, a ação do Tesouro para a redução do volume de lotes é chamada de cancelamento branco, pois, na prática, é o equivalente a quase não fazer o leilão.

Técnicos do Ministério da Fazenda, ouvidos na condição de anonimato, admitem a deterioração do quadro e avaliam que, sem as distorções do mercado provocadas pela concorrência dos títulos incentivados, as taxas das NTN-B estariam num patamar mais baixo.

Eles preveem a continuidade do que chamam de espiral negativa, diante da proliferação de fundos de crédito formados por debêntures incentivadas, que têm contribuído para a redução do spread (taxa adicional de juros que um investidor recebe sobre uma taxa de referência) e aumentado a concorrência com as NTN-Bs.

O investidor em debêntures incentivadas aceita receber uma taxa menor porque sabe que não haverá a cobrança do IR. A esse problema se soma o prêmio de risco que o Tesouro tem que pagar a mais para vender seus títulos em razão das incertezas futuras sobre os rumos das contas do governo e a tendência de alta da dívida pública.

Como mostrou a Folha de S.Paulo, a rentabilidade das NTN-Bs tem subido nas últimas semanas para patamares históricos. A taxa prefixada que acompanha a variação do IPCA ultrapassou os 8% nos papéis com vencimento em 2029. Este é o maior percentual fixo deste título desde sua emissão, em 2023.

O estrategista-chefe de Macro e Dívida Pública da corretora Warren Rena, Luis Felipe Vital, chama a atenção que a cotação do dólar estava a R$ 6,30 e a taxa de NTN-B a 7,30% em dezembro do ano passado. Agora, o dólar está em R$ 5,50 e a taxa da NTN-B segue a 7,30%.

A NTN-B com prazo de vencimento de 2045, que é referência mais importante para o longo prazo, estava com taxa de 7,4016% em 30 de dezembro do ano passado e o dólar a R$ 6,17. No último dia 10 de outubro, a taxa para o mesmo título era de 7,4576% para um dólar de R$ 5,52.

“Existem componentes macro[econômicos] externos que melhoraram e as taxas das NTN-Bs não reagiram”, diz Vital. Ele destaca um complicador: o aumento das emissões de novos títulos do Tesouro acima dos vencimentos.

Pelos seus cálculos, o percentual de rolagem para o financiamento da dívida, que normalmente é de 100% dos títulos que vencem, está hoje em 130%. Segundo o estrategista da Warren, esse movimento do Tesouro visa recompor o colchão de liquidez da dívida para 2026, ano de eleições.

O colchão garante ao Tesouro não precisar fazer leilões de títulos em casos de turbulências no mercado. Os anos de eleição são tradicionalmente desafiadores para o Tesouro. Em 2027, também há vencimentos de grande volume de títulos. “O Tesouro precisa se preparar para isso”, diz ele.

Vital prevê que o governo vai entrar o ano que vem com um colchão de cerca de R$ 1,3 trilhão – o equivalente a oito meses e meio sem que o Tesouro precise fazer leilões de venda de títulos. Até 2019, o Tesouro tinha a flexibilidade de reforçar o colchão também com recursos repassados pelo Banco Central, do lucro da instituição, o que não é mais permitido.

“Existe um volume grande de títulos a ser digerido. É um momento de acomodação. O Tesouro está dando tempo ao mercado para absorver as emissões que já foram feitas”, afirma Vital, que considera acertada a estratégia do Tesouro de reduzir os lotes para lidar com as distorções do momento.

O ex-secretário do Tesouro Paulo Valle explica que a concorrência das debêntures incentivadas gera um subsídio às custas do Tesouro, que paga uma taxa de juros maior do que deveria se não houvesse a pressão das debêntures com isenção de IR. “É um custo que interfere no financiamento da dívida”, diz Valle, que já foi também subsecretário da dívida pública do Tesouro.

Ele lembra que o Tesouro foi contrário no passado à criação das debêntures incentivadas, mas foi vencido nas discussões. Para Valle, o Tesouro tem instrumentos para tirar essa pressão sobre as NTN-Bs com a redução dos lotes. “A preocupação do Tesouro Nacional é sempre não ficar refém”, afirma.

No dia em que a MP foi rejeitada pela Câmara, o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga colocou holofotes em entrevista à Folha de S.Paulo ao subsídio pago pelo Tesouro via as debêntures incentivadas e chamou de barbeiragem a manutenção dos títulos incentivados. Armínio considera que esses subsídios não têm justificativa econômica ou social e não fazem sentido. “Mesmo para algumas áreas, como infraestrutura, isso precisaria ser feito de forma seletiva, com análise de custo benefício.”

Nas negociações da MP com o Câmara, o fim da isenção das debêntures de infraestrutura foi um dos primeiros itens a sair do texto, mostrando a força dos setores beneficiados pela isenção.

Procurado pela reportagem, o Tesouro não respondeu o pedido para falar sobre o tema até a publicação desta reportagem.