SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma potencial parceria entre o Hospital Clínic de Barcelona e instituições nacionais pode acelerar o acesso no Brasil a terapias CAR-T utilizadas no tratamento de pacientes com cânceres do sangue, como linfomas e leucemias.
Nos próximos dias, representantes espanhóis discutirão com entidades a ideia de licenciamento de uma tecnologia para produção local de terapias desenvolvidas na instituição espanhola e que custam um terço das terapias comercializadas pela indústria farmacêutica custam na faixa de 89 mil a 99 mil euros (R$ 569 mil a R$ 633 mil), enquanto o usual é de 300 mil a 400 mil euros (R$ 1,9 milhão a R$ 2,56 milhões).
Entre as instituições brasileiras que estão no radar dos espanhóis estão o Hemocentro da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, em parceria com o Instituto Butantan, o Einstein Hospital Israelita, a Fiocruz e o Hospital Universitário da UFC, entre outras.
A favor das chamadas terapias ARI em homenagem a Arianna, uma paciente está o tratamento de mais de 600 pessoas, com taxas de sucesso comparáveis às terapias comerciais: 90% de resposta completa em leucemia linfoblástica aguda e 60% em mieloma múltiplo, com um diferencial importante foram desenhadas para ter toxicidade menor, já que havia casos em que a agressividade do tratamento era letal para pacientes.
“Incorporamos uma molécula mais suave, menos explosiva. A resposta é mais lenta, mas alcançamos os mesmos resultados com menor toxicidade. Às vezes, ser mais lento é melhor”, defende Álvaro Urbano, diretor do departamento de medicina da Universidade de Barcelona e líder do projeto.
“Não tínhamos recursos financeiros na época. Graças à Arianna e sua mãe, obtivemos da sociedade civil o necessário para ter mais pessoas envolvidas no projeto e iniciar o ensaio clínico com os primeiros pacientes”, relembra Urbano. O total arrecadado na época, 2015, foi de 1,5 milhão de euros.
Um diferencial no quesito regulatório é que as terapias ARI estão aprovadas como “exceção hospitalar”, com permissão para uso clínico dentro da Espanha. Embora a terapia não possa ser comercializada na Europa, já há iniciativas de parcerias locais de desenvolvimento, como na Índia que conseguiu baixar o preço praticado na Espanha pela metade, para 45 mil euros (R$ 288 mil).
O tratamento com células CAR-T usa o próprio sistema imunológico do paciente: as células T são retiradas do sangue, modificadas em laboratório para reconhecer e atacar o câncer, e depois reinseridas no corpo para agir como uma espécie de “exército personalizado” contra os tumores. Um dos parâmetros críticos aí é o “tempo da veia à veia”, dentro dessa janela de processamento.
O tempo no Hospital Clinic de Barcelona é de 9 dias, ao passo que em alternativas comerciais pode passar de um mês. Tanto o tempo de processamento das células quanto o período de espera até a aprovação do tratamento pelas entidades pagadoras são fatores críticos para o sucesso da terapia.
“A acessibilidade global permanece extremamente baixa. É preocupante ver que trouxemos essas terapias inovadoras incríveis que, depois de oito anos, estão mudando vidas e ainda muito poucos pacientes podem se beneficiar delas”, diz Noelia Mateo, diretora global de estratégia de terapias avançadas do Hospital Clinic de Barcelona.
Mateo e Urbano apresentarão as terapias ARI e seus resultados no Conahp, Congresso da Associação Nacional de Hospitais Privados, em São Paulo, na próxima quarta (15). Quem vai mediar a sessão é Victor Piana, CEO do A.C.Camargo Cancer Center. Para ele, as terapias avançadas, como as celulares e genéticas, incluindo as CAR-T e semelhantes, são uma oportunidade de instituições acadêmicas retomarem o protagonismo no desenvolvimento de novos tratamentos de saúde.
“O CAR-T cell está evocando, trazendo de volta a academia as universidades para a fronteira do conhecimento e do desenvolvimento de novos medicamentos. Enquanto os fármacos eram baseados na indústria química, área em que o Brasil não é forte, o país estava distante”, diz.
“Agora, com os medicamentos de desenho genômico que partem do conhecimento sobre mutações do câncer para modificar sequências genéticas o Brasil e o mundo estão mais competentes e preparados. As universidades voltam a trafegar na fronteira da inovação, o que é muito bom, pois, quando entram no sistema para desenvolver, os custos tendem a cair”, acrescenta Piana.
Iniciativas nacionais também têm dado passos importantes. O Einstein Hospital Israelita, que recebeu aprovação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para dar início à aplicação em seres humanos de células CAR-T, já tratou cerca de 40 pacientes com essa terapias, incluindo 12 em seu estudo clínico próprio com manufatura local.
O Einstein desenvolveu três estudos clínicos aprovados pela Anvisa: CAR-T contra CD19 para leucemias e linfomas, células NK expandidas para leucemia mieloide aguda, e linfócitos T citotóxicos contra citomegalovírus. “A grande maioria dos pacientes veio do SUS. É o início de algo muito bonito para chegarmos ao que aconteceu em Barcelona”, afirma Kerbauy.
A iniciativa mais ambiciosa vem do Hemocentro de Ribeirão Preto, que em parceria com o Instituto Butantan construiu uma verdadeira fábrica de CAR-T cells. Com 23 anos de experiência em terapia celular e investimento de R$ 101 milhões do Ministério da Saúde, o centro lidera o estudo Carthedrall, que incluirá 81 pacientes em cinco hospitais paulistas.
“Em 2019, tratamos o primeiro paciente na América Latina com tecnologia CAR-T”, relembra Diego Villa Clé, coordenador do projeto. “Publicamos nossa experiência de 20 casos compassivos com resultados muito semelhantes aos da indústria farmacêutica, tanto em eficácia quanto em toxicidade.”
O Núcleo de Terapias Avançadas (Nutera) possui 16 salas limpas (estrutura fundamental para manuseio de células com as devidas boas práticas). O objetivo é ambicioso: “Queremos registrar nosso produto na Anvisa e disponibilizar para o SUS a um custo de um quinto a um terço [do valor] do produto vendido comercialmente hoje”, diz Villa Clé.
A Fiocruz anunciou colaboração com a Caring Cross, organização sem fins lucrativos dos EUA, para desenvolver manufatura local de terapias CAR-T para oncologia, doenças infecciosas e genéticas. A fase inicial do acordo terá como foco terapias com células CAR-T para leucemia e linfoma, contando com versões aprimoradas de produtos que têm sido usados com sucesso no tratamento de pacientes em diferentes países.
Segundo a Anvisa, atualmente existem 10 estudos clínicos com CAR-T autorizados no país, sendo 8 intervencionais e 2 observacionais de monitoramento.
O Ministério da Saúde diz investir R$ 542 milhões em pesquisas com células CAR-T, apoiando duas plataformas principais: R$ 100 milhões para o Hemocentro de Ribeirão Preto com Butantan e USP, com prazo de execução de 34 meses, e a iniciativa da Fiocruz para transferência de tecnologia.
Além disso, o Centro de Competência em Terapias Avançadas (CCTA), coordenado pelo Einstein em parceria com Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e Embrapii (Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial), deve ampliar a capacidade científica e produtiva do país com desenvolvimento de terapias alogênicas que utilizam uma única fonte de células para tratar múltiplos pacientes.
“Essas iniciativas buscam consolidar as bases para que, no futuro, essas terapias estejam disponíveis de forma segura, equitativa e custo-efetiva no SUS”, afirma em nota o ministério, ressaltando que ainda não há pedidos de incorporação da tecnologia junto à Conitec.
Além das terapias alogênicas, outros estudos vão na direção de tratamento de doenças autoimunes, como lúpus, caso do Hemocentro de Ribeirão Preto, e de tumores sólidos que até então têm se mostrado razoavelmente resistentes a essa estratégia.