SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O dia 8 de agosto de 1977 marcou um ponto de virada para os estudantes de direito da USP, no Largo de São Francisco. Cerca de 2.000 jovens se reuniram ao redor do professor Goffredo da Silva Telles Jr., que leu a “Carta aos Brasileiros”, chamando a atenção da sociedade para os abusos cometidos pela ditadura militar. Era um gesto a favor da democracia, que serviu para mobilizar os alunos e instaurar ali uma luta contra o regime militar.

O documento seria lido três vezes, a cada vez para um público maior. A escolha de Telles como orador fora estratégica: o advogado tinha horror ao marxismo, tendo apoiado a ação integralista na juventude.

A luta dos alunos do Largo de São Francisco contra a ditadura é resgatada agora no livro “O Espírito de Um Tempo de Lutas”, escrito por José Ruy Gandra, historiador e ex-repórter da Folha. “Meu entusiasmo pela pesquisa para o livro se acentuou com a realidade do Brasil. Vimos o golpismo ser tolerado e estimulado por Bolsonaro, então essa obra acabou ganhando relevância política e histórica”, afirma ele, que estudou na faculdade.

Para a realização do livro, o autor fez pesquisas nos acervos dos principais jornais do país, incluindo o da Folha de S. Paulo, e entrevistas com contemporâneos da geração que frequentou as arcadas do prédio histórico, entre 1976 e 1980.

Fundada em 1827, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco formou, em seu prédio de estilo neocolonial, escritores seminais da literatura do país, como os poetas Álvares de Azevedo, Alphonsus de Guimarães e Oswald de Andrade, além do romancista José de Alencar. Despontam ainda entre os notáveis os juristas Hélio Bicudo e Miguel Reale Júnior, além do ex-presidente Michel Temer e de Ulysses Guimarães, que presidiu a Assembleia Constituinte.

Além da pesquisa, “O Espírito de Um Tempo de Lutas” diferencia-se por seu esteio memorialista. O autor estava lá, viu e ouviu tudo e entendeu ser importante contar a história, considerando também o que ocorria além das arcadas.

Gandra rememora a sua geração como um grupo heterogêneo, vivendo as contradições da época. “É uma geração que, na primeira metade da década, tinha uma angústia sartriana, porque a liberdade sexual estava começando, mas havia grande timidez. Essa angústia tomou o caminho do enfrentamento à ditadura logo quando a economia brasileira parou de bombar e entrou em uma grave crise”, lembra.

A contradição sentimental daqueles jovens espelhava, segundo o primeiro capítulo do livro, o que o autor chamou de década cindida. De um lado, o aparato repressivo da ditadura se tornava presente com a censura e a redução dos direitos com o AI-5 (Ato Institucional número 5). Do outro, a máquina de propaganda do regime militar usava a vitória da seleção brasileira na Copa de 1970 como estratégia de autopromoção, alardeando também o milagre econômico.

A leitura da carta, no Largo de São Francisco, provocou diferentes reações: engajou a juventude, mas incitou os militares contra o ambiente universitário. A rigor, desde o início daquele ano, os alunos haviam organizado várias passeatas, narradas em detalhes no livro. Em agosto, tropas da polícia cercaram a faculdade e lançaram, dos blindados, bombas de efeito moral.

Três meses antes, os jovens reiteraram a condição do Largo de São Francisco de ser um “território livre” e convocaram um protesto contra a prisão de três estudantes e três sindicalistas, que distribuíam panfletos para engajar o operariado da região do ABC paulista.

Pouco a pouco, diz o livro, o movimento estudantil da USP se separou em subgrupos ideológicos, como Libelu, Refazendo e Caminhando.

O engajamento dos uspianos culminaria no episódio da invasão ao campus da PUC, onde alunos de diferentes faculdades se reuniram para o Encontro Nacional dos Estudantes. Cerca de 900 pessoas foram detidas, algumas delas encaminhadas ao Dops (Departamento de Ordem Política e Social).

Como o autor mostra no livro, a vinda do papa João Paulo 2º, em 1980, foi determinante para a abertura democrática.

João Paulo 2º, recorda Gandra, tornou-se patrono de sua geração, mesmo sendo, em sua maioria, laica. “Todos os movimentos pegaram carona dele, porque você tinha ali uma figura progressista, que foi um baita alento para todo mundo que estava sufocado ali dentro”, diz o autor. “Ele atacou a pobreza, a concentração de terras, defendeu os favelados e expôs a ditadura para o mundo.”

O Espírito de Um Tempo de Lutas

Quando: Lançamento em 14 de outubro, às 18h, no Largo de São Francisco

Autoria: José Ruy Gandra