JUAZEIRO, BA (FOLHAPRESS) – “Alevanta negro, cativeiro se acabou”, cantam os lambe-sujos pelas ruas de Laranjeiras (SE), a 22 km de Aracaju. O grupo sai em paralelo aos caboclinhos todo segundo domingo de outubro, desde 1860.

A tradição centenária no Sergipe encena de forma lúdica conflitos entre negros escravizados (representados pelos lambe-sujos) e indígenas (os caboclinhos) no período do Brasil Colônia.

A pequena cidade —de maioria negra— se transforma durante o festejo, que neste ano casa com o Dia das Crianças (12 de outubro).

Sua população, estimada em pouco mais de 24 mil habitantes, multiplica-se com a chegada de milhares de visitantes, em uma das maiores celebrações a céu aberto do país.

A festa dura o dia todo, dividida em vários atos. Inicia com uma alvorada, às 4h. Depois, os participantes começam a se pintar. Ainda pela manhã, são realizados celebrações religiosas.

De um terreiro Nagô, sai um dos personagens, o Preto Velho. Em frente a uma igreja católica, todos recebem bênçãos do padre, que coroa o chefe dos lambe-sujos.

Pela tarde, os personagens históricos ganham as ruas. Reis, caciques, matriarcas e outras figuras são vividos por brincantes de todas as idades.

O grupo que representa os negros sai pintado com uma mistura de melaço de cana e tinta preta em pó. Inspirados no saci-pererê, vestem-se com gorros e bermudas de flanela vermelha.

A combinação faz referência às estratégias de fuga dos escravos, que se lambuzavam para, ao entrar nas matas, grudar folhagens no corpo. Assim, despistavam os capitães do mato e ganhavam tempo para chegar aos quilombos.

Do outro lado, estão os que simbolizam os indígenas, que eram contratados pelos donos de engenho para recapturar escravos. Seus brincantes usam a mesma mistura para pintura, mas em tom vermelho, e utilizam cocar e outros adereços.

“Os indígenas que foram à procura dos negros nas matas foram iludidos pelos brancos que diziam que eles iam tomar as terras deles”, diz o funcionário público Ruston Luiz Zuzarte, 58.

Rustinho, como é conhecido, é o príncipe dos lambe-sujos há 30 anos, um dos líderes do grupo. Seu envolvimento com a tradição começou aos dez anos. Iniciou nos caboclinhos e com a maioridade passou para os lambe-sujos.

“A gente vendo sempre na porta aquela manifestação desde criança cria gosto em participar também. Aqui é um teatro à céu aberto, onde o nosso principal palco são as ruas da cidade interagindo com o povo.”

Do lado lambe-sujo, entre centenas de homens, poucas mulheres são aceitas. A principal é a Mãe Suzana, personagem que representa as matriarcas quilombolas. Responsável pela comida, ela carrega um grande balaio na cabeça com utensílios domésticos.

Na casa das famílias, é tradição comer feijoada. E uma grande porção, feita com doações recolhidas na feira da cidade, é distribuída no centro da cidade.

Embalada por batuques que tocam ritmos afro-brasileiros, a festa é regada a muita cachaça. A bebida virou tradição por conta dos aguardentes que eram doados por proprietários de alambiques da região.

Laranjeiras é situada em uma região marcada pela produção de cana-de-açúcar com muitos engenhos —e com passado de escravidão.

“Essa prática de resistência de escravizados e escravizadas, como a fuga, era algo muito comum na região. Então, [a festa] é uma reprodução do que os antepassados faziam e isso foi passado a partir da oralidade. Ela sofreu várias alterações, mas a origem permanece a mesma, de celebrar a resistência”, explica o historiador Denio Azevedo, 48, servidor do escritório do Ministério da Cultura em Sergipe.

O auge da festa é pela tarde, quando os lambe-sujos capturam a rainha e levam para o quilombo. Os caboclinhos lutam para tentar o resgate e uma grande disputa é travada.

“Os negros fazem com que os indígenas se irritem e gera o combate”, afirma o professor Gilvaldo Pereira Santos, 65, o Mestre Nininho. “A gente tem aqueles confrontos, mas depois da manifestação todo mundo se apazigua.”

Mestre Nininho participa há 55 anos. Começou ainda criança, no grupo dos negros, o que foge à regra. “Várias vezes mandavam o capitão do mato me levar em casa. Quando meus pais bobeavam, eu pulava o muro e tava dentro de novo”.

Há 22 anos, trocou de grupo, passou a ser o cacique. E a tradição, que aprendeu com seus pais, passar para as próximas gerações. Netas e sobrinhos já saem na folia. “Aqui a família é toda folclorista. É uma tradição, a gente não pode deixar morrer.”