SÃO PAULO, SP, E JEDÁ, ARÁBIA SAUDITA (UOL/FOLHAPRESS) – Em meio a uma massiva campanha de investimento no esporte para remodelar sua imagem global, a Arábia Saudita gerou uma consequência positiva e, de certa forma, não intencional: o crescimento acelerado do futebol feminino.
Enquanto o debate sobre sportswashing continua nos círculos políticos, para as mulheres em campo a realidade é de um campeonato em franca ascensão. Elas podem ter sido atraídas pelo marketing, mas encontraram na Arábia Saudita um propósito que vai além do esporte.
PROPÓSITO ALÉM DE CAMPO
A brasileira Letícia Nunes e a anglo-nigeriana Ashleigh Plumptre, ambas do Al Ittihad, encontraram uma oportunidade única na carreira graças à estratégia geopolítica: a chance de construir legado.
A desconfiança inicial, no entanto, era palpável. Com uma carreira consolidada na Superliga Inglesa e três temporadas no Leicester City, Plumptre admite que sua primeira reação ao interesse saudita foi de total recusa. “Eu estava tipo, por que eu iria para a Arábia Saudita?”, disse, revelando que a princípio sequer quis ouvir a proposta.
Uma conversa, porém, foi suficiente para transformar a percepção de Ashleigh. A decisão, ela frisa, transcendeu o aspecto financeiro e passou pelo sentimento de participar do desenvolvimento da modalidade no país.
“Em uma hora de papo, me conectei com as pessoas na chamada, saí do telefone e disse: ‘Pai, acho que é lá que eu quero estar’. Eu não poderia ir a qualquer lugar só por causa do dinheiro. No final do dia, meu contentamento e felicidade na vida são muito mais importantes. Eu não acho que poderia sobreviver em um ambiente, mesmo se eu fosse bem paga, caso não gostasse, ou se não estivesse uma conexão, de fato”, afirma Ashleigh.
Além dos altos salários, o senso de propósito é o que move muitas das atletas estrangeiras no país. Elas compreendem que o papel vai muito além das quatro linhas, atuando como mentoras para acelerar a evolução das jogadoras locais.
“O nosso papel aqui, de estrangeiras, é conseguir trazer uma bagagem para elas de outras ligas, de outras competições. Existe essa dúvida, será que o nível técnico acompanha o de outras ligas, será que pode uma convocação para a seleção e toda essa coisa… Hoje a gente acompanha ligas europeias com um nível muito alto, mas todo mundo teve que começar de algum lugar, né?”, diz Letícia.
‘JOGADA DE MARKETING’ COM IMPACTO REAL
A troca de experiências tem gerado resultados visíveis na evolução das sauditas dentro e fora dos gramados, embora a abertura do país ao futebol feminino seja vista como uma “jogada de marketing” para o mundo.
É assim que a antropóloga Francirosy Campos Barbosa, pesquisadora no Departamento de Psicologia Social na Universidade de São Paulo (USP), analisa as transformações significativas em curto prazo.
A Arábia Saudita passou por rápidas mudanças, como o fim da proibição de mulheres em estádios em 2018 e a criação da primeira liga feminina em 2020. Essas ações integram o projeto “Visão 2030”, que busca sediar a Copa do Mundo de 2034 para diversificar a economia e aumentar a relevância global.
Segundo Barbosa, ao promover uma imagem, o país “tem que mexer, mesmo que minimamente, com a estrutura”. Esse movimento resulta em um caminho “muito benéfico para a própria sociedade saudita, e principalmente para as mulheres”.
A força dessa mudança, no entanto, não vem apenas da decisão do governo ou da pressão global. A especialista analisa que a demanda também é interna, das próprias mulheres sauditas. Se não houver mulheres dentro do país “que tensionem essas questões, nada iria mudar”.
A gente tem que pensar nisso como um ganho. Vou usar a expressão do futebol… É um gol de letra, né? Porque isso vai trazer os benefícios econômicos, sociais, da questão feminina, da participação feminina, e vai trazer essa outra imagem [ao país].Francirosy Campos Barbosa, pesquisadora da USP
Além disso, a partir do momento em que conquistas como o direito de dirigir e jogar bola são alcançadas, não há como retroceder. “Disso eu tenho certeza. Não há como retornar ao que era”, afirmou Barbosa.
ENTRE ABAYAS E SHORTS
Por outro lado, a busca por autonomia não significa afastamento da identidade cultural ou religiosa, incluindo as vestimentas. A antropóloga pontua que muitas mulheres muçulmanas querem as suas autonomias “sem abandonar seu pertencimento religioso”.
Letícia, que chegou ao país há duas temporadas, hoje considera a Arábia Saudita sua segunda casa. Apesar do “dress code” local para o dia a dia, a realidade nos campos é diferente, e o futebol parece seguir as próprias regras. No pós-treino do Al-Ittihad, em Jedá, a reportagem do UOL pôde observar atletas estrangeiras com shorts curtos e ombros à mostra.
Fora das quatro linhas, no entanto, Letícia Nunes abraçou os costumes, inclusive adotando a abaya, uma espécie de manto preto e longo, em ocasiões formais. “Na minha visão, quem tem que se adaptar a eles sou eu, né? Eu que sou a estrangeira”, contou.
A adaptação foi tão profunda que gerou uma consequência curiosa para a atacante. “Quando eu volto para o Brasil, eu não estou conseguindo usar short mais. Está sendo um terror”, contou, aos risos.
A convivência entre estrangeiras e sauditas é vista como um ponto-chave dessa transformação cultural. “Misturar mulheres que usam seus shortinhos, usam suas roupas curtas, com mulheres que vestem suas roupas mais cobertas, é um ganho”, disse a antropóloga.
Ela explica que esse ganho é, em grande parte, tecnológico e de mercado, pois incentiva a inovação para atender novas consumidoras.
“O marketing, quando ele é disparado, você não sabe onde ele alcança. Mas é lógico que as grandes empresas esportivas vão olhar. Elas pensam: ‘Bom, a gente precisa fazer uma roupa X com uma qualidade X, porque essas mulheres vão consumir essas roupas.’ As vestimentas precisam ser aprimoradas para que as mulheres muçulmanas também se sintam mais confortáveis e que elas possam, enfim, fazer a sua prática esportiva”, diz Francirosy.