SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ao sair de casa no final da tarde de terça-feira, 30 de setembro, para tomar uma cerveja com os amigos, o advogado Luiz Fernando Pacheco estava muito alegre, contou a mãe dele, Norma.

Foi a mesma felicidade percebida pelos últimos amigos a se encontrarem com ele no começo daquela noite, o defensor público Renato De Vitto e o advogado Daniel Machado. Os três foram ao bar/lanchonete 155, próximo ao Fórum da Barra Funda e tradicional ponto de encontro de profissionais do direito em São Paulo.

“Ele era uma pessoa expansiva e alegre sempre, mas nesse dia estava especialmente feliz”, relata De Vitto. Pacheco falou sobre a convivência com os pais, ambos de 79 anos, com quem voltou a morar depois de três casamentos e que tinham retornado a casa de internações hospitalares havia pouco tempo.

“Não sei se premonitoriamente ou não, ele falou muito carinhosamente dos dois, em especial da mãe. Fez uma observação que não sai da minha cabeça, de que talvez um dos problemas para a vida dele tenha sido ser tão profunda e intensamente amado pela mãe.”

De Vitto ia discordar, quando Pacheco se corrigiu. “Ele falou, não, isso não existe, amor demais não é um problema, né? Amor nunca é demais. Falou principalmente da mãe, mas também dos filhos dele, a Âmbar e o Tom. Contou um pouco nostálgico que não estavam presentes no cotidiano [moram no exterior], mas que o amor não mudava.”

Poucas horas depois, nas primeiras horas da quarta (1º de outubro), Pacheco, criminalista respeitado e querido por seus pares, morreu após ser agredido por um assaltante a poucos metros de casa, em Higienópolis. Tinha 51 anos. Havia se mudado com os pais para o bairro neste ano, vindos do Itaim Bibi, onde também fica o escritório que leva seu nome.

Assustados com os casos de intoxicação por metanol, os três amigos beberam só cerveja no bar da Barra Funda, por pouco mais de três horas, entre 18h e 21h. Noveleiro convicto, Pacheco estava empolgado com a reta final de “Vale Tudo”. Avisou à garçonete que pretendia assistir ali ao capítulo daquela noite, ela disse que o bar iria fechar.

Chamou De Vitto e Machado para esticarem em Higienópolis, mas os dois não podiam. Perto das 21h30, Pacheco então pegou um táxi sozinho para o bar Mac Fil, na rua Maria Antônia, ao lado da universidade Mackenzie, que costumava frequentar.

Lá tomou mais umas cervejas e, segundo relato de funcionários, estava contente. Acabou sem ver a novela, mexeu muito no celular (no qual também ouviu música, sem fones, encostando o aparelho no ouvido e cantando), levantou para fumar e fechou o bar, por volta das 23h30.

Imagens de câmeras de segurança mostram Pacheco alegre, cantando, com os braços abertos, logo após sair do Mac Fil, rumo à sua casa, na rua Piauí, a menos de 1 km.

Chegou a interromper a caminhada no trajeto de 300 m até a esquina das ruas Itambé e Maranhão, provavelmente pelo mesmo motivo que o levou a se apoiar na suporte de ferro das placas de identificação das ruas instantes antes de ser agredido: o advogado se locomovia com dificuldade por usar uma prótese encaixada entre a bacia e o fêmur.

Um desgaste no principal osso da perna o levou a colocar a prótese, há mais de 15 anos. Já tinha feito três cirurgias para tentar resolver o problema, que lhe causava desconforto e dores lancinantes. Usou bengala por muito tempo e, graças a um tratamento alternativo com uma fonoaudióloga, relatava ter melhorado e tinha esperança de evitar uma nova operação. Mas ainda cambaleava –às vezes dentro de casa mesmo.

Durante a pausa, o casal de assaltantes o vê abraçado ao poste e resolve roubar seu celular. Pacheco resiste, o ladrão o agride e o atira ao chão, onde cai estatelado. Levam também seu relógio (segundo a família, um Rolex falsificado comprado de um amigo).

Uma testemunha o vê convulsionando e chama o Samu, que conduz o advogado à Santa Casa, a 500 metros dali, onde já chega morto, nas primeiras horas da quarta-feira (1º). Laudo preliminar apontou traumatismo craniano (da queda) como causa da morte.

No final da manhã desse mesmo dia, começa o calvário da família e dos amigos. A mãe de Pacheco liga para a advogada Naiara Moura, amiga próxima do criminalista. Em grupos de mensagem, uma movimentação frenética busca informações —ninguém sabe de nada.

Pacheco não andava com documentos impressos, apenas digitais, no celular. Como o aparelho foi levado, seu cadáver ficou mais de 30 horas na Santa Casa sem ser identificado, o que só ocorreu no dia seguinte (quinta, dia 2) pela manhã, por meio de impressões digitais. A única irmã do advogado, Ana Paula Pacheco, escritora e professora de literatura da USP, foi ao IML reconhecer o corpo.

“Se tem algo razoável a se tirar do que aconteceu é que a sociedade brasileira precisa costurar esse abismo entre riqueza e pobreza”, disse Ana Paula à reportagem. “Meu irmão foi morto por pessoas que não têm nada, como muitas que ele defendeu. Era muito sensível às injustiças do mundo.”

Se tem algo razoável a se tirar do que aconteceu é que a sociedade brasileira precisa costurar esse abismo entre riqueza e pobreza. Meu irmão foi morto por pessoas que não têm nada, como muitas que ele defendeu. Era muito sensível às injustiças do mundo

irmã do advogado

É um traço destacado pela legião de colegas, amigos e autoridades que lamentaram a partida precoce de Pacheco. “Era muito audacioso, altivo, corajoso. Muito objetivo, direto. Uma pessoa de grandes princípios e convicções, que se importava com a injustiça do sistema penal e com a injustiça social do país”, afirmou De Vitto.

Pacheco foi pupilo do ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, em cujo escritório estagiou. Foi um dos fundadores do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) e do Prerrogativas, grupos de advogados progressistas e defensores dos direitos humanos. De 2022 a 2024, presidiu a Comissão de Prerrogativas da OAB-SP, com um trabalho elogiado pelos colegas.

Secretário-geral da comissão durante a gestão de Pacheco, Ivan Calmanovici aponta outra característica que surge em inúmeros depoimentos sobre o colega. “Ele tinha um coração imenso, era muito generoso, o cara mais humano e gente boa, que ajudava as pessoas. Tinha esse jeito carcamano, brigão, mas era um puta cara doce.”

Ana Paula também ressalta a intensidade do irmão, alguém muito “expressivo, visceral, passional”. Lembrava muito, ela diz, o avô materno, imigrante italiano. No ano passado, o advogado, que só tinha os sobrenomes paternos (Sá e Souza Pacheco), foi à Justiça para acrescentar o sobrenome italiano da família materna, Rago.

Durante o julgamento do mensalão, um episódio revelou ao país essa faceta de Pacheco, que defendia o petista José Genoino e foi ao microfone numa sessão do STF reclamar que um recurso de seu cliente não tinha sido pautado por Joaquim Barbosa, apesar do parecer favorável do procurador-geral da República.

Barbosa, relator do processo, não gostou e mandou que seguranças expulsassem o advogado do plenário.

Para De Vitto, se por um lado o episódio criou para uns uma imagem de destemperado, “é nesse momento também que nasce um grande líder, um advogado dos advogados. O Pacheco se credenciou a ser um grande defensor das prerrogativas da advocacia”.

Não engolir desaforo lhe custou caro em outro episódio de violência urbana, cerca de 20 anos atrás. Um flanelinha quis lhe cobrar antecipado para estacionar na rua, Pacheco disse que pagaria na volta, discutiram, e o homem o espancou com golpes de bastão de madeira na cabeça, causando perda de parte da audição.

Amigos realçaram a alma boêmia e o amor de Pacheco pela poesia e pela literatura. Durante a pandemia, o advogado escreveu um livro de contos, “Pau de Cavalo”, que transita pelo universo das desigualdades, da violência urbana e do sistema prisional.

Lançado em 2023, o volume é sarcasticamente dedicado a Jair Bolsonaro —porque ele achava, diz a irmã, “que o bolsonarismo tinha parte com o aumento das desigualdades, da criminalidade e da violência urbana”.

Pacheco não se conformava com a insegurança e era destemido, narra Ana Paula. “Achava que a rua era um lugar público. Gostava de Higienópolis porque podia voltar a pé para casa.”

Numa publicação em redes sociais, a irmã escritora, escreveu ao “irmão amado”: “Você morreu por nada. Ou por séculos de desigualdade e brutalidade, contra os quais você lutava, ‘como boi fatal’ [referência a um poema de Mário de Andrade, em que ele diz se sentir culpado “de milhões de séculos desumanos”]. Meu coração está em frangalhos por você e por nós”.