SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando Paulo Cesar Torres chegou à Aparecida (SP), aos 19 anos, ele se viu como um peixe cristão fora d’água.
“Antigamente, era bastante difícil”, diz. “O povo evangélico se sentia um pouco desprezado por ser minoria em cidade fortemente vinculada ao catolicismo.”
Hoje, não. “Nosso grupo é bem grande. Tenho muito acesso ao poder público, sou recebido pelo prefeito.”
Torres, 57, é pastor há mais de duas décadas. Lidera a Igreja Nova Vida, onde congregam cerca de 350 fiéis. Um rebanho que, pela tendência estatística, tem tudo para continuar crescendo nos próximos anos.
A terra do Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, que neste domingo (12) atrairá milhares de romeiros em caravanas vindas de todo canto para o feriado da santa, já não é tão católica assim quando se olha para quem mora lá.
A concentração católica ainda é densa quando comparada à média nacional, mas a proporção encolheu quase nove pontos percentuais em 12 anos: de 85,9% da população em 2010 para 77% em 2022, segundo o Censo 2022. No país como um todo, 56,7% das pessoas com 10 anos ou mais se declara adepta dessa crença.
Em números absolutos, a queda em Aparecida foi de 26,2 mil para 22,1 mil moradores que se reconhecem católicos. A religião que mais avançou no município foi a evangélica, que agora representa 18% dos residentes no censo anterior, eram 11,4%. O salto foi de 3.481 para 5.175 crentes.
O recuo repete, em escala local, o mesmo movimento no país. Enquanto em Aparecida os católicos diminuíram 8,9 pontos percentuais, no quadro nacional a retração foi de 8,4.
Já a expansão evangélica na cidade supera com mais folga a média geral: 6,6 pontos ali, e 5,3 no país. A prefeitura computa nove templos evangélicos em seu cadastro mobiliário, número que pode chegar a 20 se considerar também os que não têm esse registro.
Aparecida não é exceção. É retrato ampliado de uma transição em curso no Brasil inteiro: menos católicos, mais evangélicos. O diferencial é que o palco onde isso acontece carrega simbolismo próprio.
Bento 16, papa à época, visitou Aparecida em 2007. Foi nessa viagem que ele atribuiu o crescimento de igrejas pentecostais a uma “sede por Deus” que a Igreja Católica não estaria conseguindo saciar.
Jornalistas embarcados no voo que o trouxe ao Brasil perguntaram sobre como a Igreja Católica deveria lidar com a perda de adeptos. Em sua resposta, Bento 16 disse que o sucesso das igrejas pentecostais “demonstra que existe uma sede por Deus”.
“As pessoas querem estar perto de Deus e procuram essa proximidade. Naturalmente elas também aceitam que essas seitas se apresentem como capazes de solucionar os problemas cotidianos”, afirmou.
Disse ainda que, para reagir, a Igreja que lidera precisava ser mais dinâmica e missionária. “E devemos também ser conscientes de que as pessoas, principalmente os pobres, querem ter isso mais perto deles.”
Diagnóstico que, 18 anos depois, o pastor Paulo também faz. Para ele, a multiplicação da fé evangélica num bastião católico tem muito a ver com a estrutura das igrejas evangélicas, menos hierarquizada.
Ele usa como exemplo aquele instante mesmo, quando atendeu a ligação da Folha de S.Paulo: “Estou visitando com a minha esposa alguém que sofreu um acidente. O pastor é muito próximo das necessidades primárias do cidadão comum: se precisa de medicamento, cesta básica, oração, se tem um filho adolescente se envolvendo com droga, bate na nossa porta”.
As lideranças católicas até exercem papel social, mas isso muitas vezes se dá de forma mais engessada. “A proximidade do pastor com o rebanho é muito grande”, diz Torres. “Todas as pessoas que frequentam minha igreja têm meu telefone, sabem onde eu moro. O atendimento é mais personalizado.”
Coordenador da pós-graduação em ciência da religião da PUC-Minas, Rodrigo Coppe Caldeira diz que a malha evangélica tem um poder de infiltração forte, o que conta pontos nesse xadrez religioso. “São espaços pequenos, acessíveis, flexíveis, que respondem rápido à questões como cura, crises familiares.”
Já o catolicismo, com uma estrutura paroquial mais enrijecida, “tem essa dificuldade de manter um grau de capilaridade”.
Caldeira traz à baila a religiosidade popular, fator que não deve ser menosprezado. “Você tem um catolicismo popular que é centrado em festa, santo, romaria, que continua existindo enquanto um traço cultural das localidades, não desaparece.”
Daí a presença de ex-católicos que mantêm traços devocionais, mesmo após se converter ao evangelicalismo. O historiador já ouviu crentes lhe admitirem que incorporam notas de catolicismo no dia a dia, como escutar orações de frei Gilson pela internet. “Com esse imaginário afetivo e essas práticas híbridas, como é que isso está se movimentando?”
Boa pergunta. O pastor Paulo diz que os crentes “acabam se acostumando” com tantos símbolos católicos espalhados pelas ruas aparecidenses, a começar por esculturas de Nossa Senhora Aparecida.
Evangélicos não creem em santos, por rejeitar a veneração de ícones e defender que só Cristo é um mediador legítimo entre Deus e a humanidade. “Aqui está cheio de fabriquetas de imagens de gesso, de madeira. Pela minha crença, não creio nelas. A Bíblia diz que a imagem feita pelo homem não tem poder de ajudar o homem.”
Torres, contudo, diz que jamais atacaria a fé alheia. Inclusive organiza, por meio da sua igreja, barracas de apoio a romeiros que vão pagar promessa em Aparecida. “Tem gente a noite inteira entregando bolo e água, fazendo massagem, dando atendimento médico, orando pelos peregrinos.”
A igreja, segundo o pastor, “tem esse papel de não brigar com o espaço, mas contribuir com o bem-estar comum”. Ele próprio mantém um bom relacionamento com padres da região. “Não tem briga, não estamos numa Faixa de Gaza.”