SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma linha atravessa o buraco do brinco da orelha. Com a ponta dos dedos, a mesma linha é amarrada sucessivas vezes ao redor da cabeça, comprimindo a pele, o nariz e a boca. Como um estrangulamento, o vídeo acaba com o fim da linha. Essa e outras proposições compõem “Situações”, exposição que revisita o trabalho de Sônia Andrade na Galeria Superfície, no centro de São Paulo.

Morta em 2022, a artista foi uma das pioneiras da videoarte no Brasil. Seus experimentos radicais com a câmera, o corpo e a TV nos anos 1970 a colocaram entre os nomes ligados aos novos meios que, em plena ditadura, buscavam romper com a tradição da pintura e da escultura. Ainda assim, sua trajetória ficou à margem por décadas. “Parte disso vem da resistência dela em circular em certos circuitos comerciais”, diz Gustavo Nóbrega, diretor da Superfície.

A mostra revisita um conjunto de obras de forte caráter político e subversivo. São oito vídeos dos anos 1970, além de obras gráficas e três instalações históricas remontadas em São Paulo.

Entre elas estão obras da série “Situações Negativas”, criada em 1977 e nunca exibida na capital paulista. Também estão lá as famosas “ratoeiras”, trabalho de 1978 no qual Andrade espalhou armadilhas em cantos de um museu, acompanhadas de imagens religiosas e medalhas militares. A intervenção gerou polêmica —algumas peças foram censuradas, outras desapareceram. “Recentemente reencontrei parte desse material no ateliê dela”, afirma Nóbrega.

Há ainda desenhos e livros de artista nos quais Andrade decompõe letras e caracteres tipográficos, transformando a linguagem e os suportes gráfico e pictórico. A aproximação com a produção de Mira Schendel, contemporânea no uso da letra como elemento plástico, é inevitável —embora, segundo Nóbrega, não haja indícios de diálogo direto entre as duas.

Já vídeos como aquele em que ela se cobre com feijões ou repete obsessivamente a frase “desligue a televisão” revelam uma pesquisa que oscila entre o gesto performático e a crítica ao consumo. Em outro registro, Andrade utiliza cortes no próprio corpo, usando uma tesoura nos pelos da virilha, da sobrancelha, do cabelo e dos cílios. “São filmes políticos, provocativos, aflitivos”, diz o galerista.

A produção de Andrade dialogava com outros artistas que experimentavam os novos meios na época no Rio de Janeiro, como Letícia Parente, Ivens Machado, Ana Vitória Mussi, Paulo Herkenhoff e Fernando Cocchiarale. O grupo, lembra Nóbrega, encontrou apoio quase exclusivo no Museu de Arte Contemporânea da USP, sob direção de Walter Zanini, que já trazia experimentações em vídeo com artistas de São Paulo. “Eles estavam rompendo com a herança da escola europeia. É a primeira geração de artistas brasileiros que investiga seriamente o vídeo e a arte postal”, afirma.

Em 1975, Andrade levou essa pesquisa também para o exterior. Participou da mostra “Video-Art”, no Instituto de Arte Contemporânea da Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia, considerada uma das primeiras exposições dedicadas exclusivamente ao vídeo nos Estados Unidos.

Com isso, ela dividiu espaço com artistas como Antonio Dias, Anna Bella Geiger, Bruce Nauman, John Baldessari e Nam June Paik, entrando desde cedo em um circuito internacional pioneiro que ampliava as fronteiras entre arte e tecnologia.

Para Nóbrega, a exposição atual funciona como um gesto de ajuste histórico. “Não é um resgate, porque Sônia sempre esteve no circuito. Mas é uma revisão. Cabe às instituições dar esse passo, e se elas demoram, nós fazemos. É uma vitrine para que os museus olhem novamente para a obra.”

A Galeria Superfície, fundada há 11 anos, se especializou em artistas de vanguarda dos anos 1960 e 1970 e em poetas visuais. “Tem galerias que são uma salada de frutas. Aqui a gente tem um direcionamento claro, uma linha conceitual e política. Esse é o DNA da Superfície”, afirma.

SÔNIA ANDRADE – SITUAÇÕES

– Quando Ter. a sex., das 10h às 19h; sáb., das 10h às 17h. Até sáb. (18)

– Onde Galeria Superfície – r. Oscar Freire, 240, São Paulo

– Preço Grátis