SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A projeção de vídeos, a música ao vivo e a adaptação do texto atualizam “O Mercador de Veneza”, de Shakespeare, em cartaz no Tucarena, em São Paulo. Mas é a intolerância que ressalta o caráter contemporâneo da peça protagonizada por Dan Stulbach.

“Eu acho muito atual a intolerância ao diferente. A peça, infelizmente, é atual. Hoje em dia aceitar outra opinião já é um problema. A gente vê isso no mundo todo: a intolerância ao estrangeiro, ao diferente”, diz o ator.

Escrita no final do século 16, a trama acompanha Antônio (Cesar Baccan), um mercador que contrai uma dívida com o agiota judeu Shylock (Dan Stulbach) para ajudar seu amigo Bassânio (Marcelo Ullmann). A garantia para o empréstimo é uma libra da própria carne do mercador, o que desencadeia um julgamento dramático quando a dívida não é paga.

O enredo tem vários acenos ao mundo de hoje, em que as atrocidades da guerra em Gaza ocupam o noticiário há longos dois anos e questões como antissemitismo, o preconceito racial e as disputas motivadas pelo capital ganham força.

Nesta montagem, Shylock é protagonista e a história é narrada a partir do ponto de vista do judeu. O espetáculo marca a volta de Stulbach ao teatro após a participação em “Morte Acidental de Um Anarquista” (2015-2019), seguida de um período que ele define como de “baixa emocional”.

O pai do ator, Jozef Stulbach, morreu durante a pandemia, vítima da Covid. A mãe também ficou doente, se recuperou, mas teve que lidar com a perda do marido.

“Foi um período de muita intensidade emocional. Acho que teve um preço, que foi a minha tristeza”, diz.

Os dias sombrios vieram acompanhados de uma reflexão sobre o trabalho como ator, em um contexto de agressividade contra a profissão, durante o governo Bolsonaro.

A falta de compreensão de uma parte da sociedade sobre o ofício e o desemprego de amigos levaram Stulbach a uma fase de recolhimento em relação ao palco.

A volta, de certa forma, é um reencontro com o pai, um judeu sobrevivente do Holocausto, assim como a mãe.

“É um desafio artístico para mim. E estou dizendo coisas que acho importantes de serem ditas”, afirma.

Stulbach questiona o hábito moderno de ter opinião formada sobre tudo, com muitas certezas, grande parte delas importadas das redes sociais, como uma terceirização do pensamento.

“O viés de confirmação acho que é o prazer preferido de boa parte das pessoas”, diz. Para ele, “O Mercador de Veneza” propõe a derrubada e a reconstrução de ideias. A proposta é que o público se surpreenda e saia da peça renovado. Não há heróis ou vilões absolutos na peça e uma pergunta fica no ar: “É preciso matar o que odiamos?”

O espetáculo estreou na capital paulista com ingressos esgotados para a temporada inteira, que vai até dezembro. Antes de São Paulo, já foi apresentada em Santo André, Guarulhos, Rio de Janeiro, Recife e Curitiba.

A estreia em São Paulo exigiu um esforço de adaptação para o palco em formato de arena.

“É um desafio, mas faz todo sentido, porque temos uma concepção que dialoga com a plateia, que aproxima o público e, ao mesmo tempo, o público também se assiste”, afirma a diretora Daniela Stirbulov.

A adaptação conduzida por ela e pelo tradutor e assistente de direção Bruno Cavalcanti foge do Shakespeare clássico.

“Isso não me interessa. O que interessa é repaginar, deixar a linguagem contemporânea e acessível para o público de hoje”, diz.

A direção e o protagonista concordaram com esse formato e, a partir disso, veio a ideia de pôr uma lupa no capitalismo, com inspiração nas disputas das bolsas de valores da década de 1990.

“Foi uma época em que a globalização começou a dar um boom, com uma mudança da visão de mundo”, diz a diretora sobre o período escolhido para a investigação teatral. “Tentei criar esse paralelo entre o mercantilismo e o capitalismo”.

Tradutor do texto para a atual versão da montagem, Cavalcanti fez também uma adaptação da dramaturgia. Presente nos ensaios, ele ouviu muito, trocou palavras, sintetizou ideias.

“Foi um trabalho quase de ourives”, diz. O livro com o texto da peça foi lançado pela Editora Giostri e é vendido no saguão do Tucarena.

Stulbach, por sua vez, mergulhou no universo de “O Mercador de Veneza” e deixou os demais assuntos de lado, inclusive o Corinthians, time que o tem como grande torcedor.

Assistiu a filmes, leu livros e ouviu podcasts, além de analisar as interpretações de outros atores, especialmente Al Pacino, no drama dirigido por Michael Radford, em 2004.

Homem dos palcos, que já trabalhou nos bastidores de peças como “O Mistério de Irma Vap” e entende bem o ritual cênico, Stulbach faz agora seu primeiro Shakespeare profissional -na época em que estudava no Colégio Rio Branco ele participou de uma adaptação amadora de “Sonho de uma Noite de Verão”.

“Shakespeare é sinônimo de teatro”, diz, para em seguida contar que está reconciliado com o palco, o lugar onde mais gosta de estar e onde as palavras têm a força da provocação.