(FOLHAPRESS) – Mathilde observa seu jardim no interior do Marrocos. Vê em seguida a enorme escavadeira enfiar os dentes metálicos na terra e desenraizar os jacarandás, salgueiros e abacateiros um por um. Vão construir uma piscina no lugar onde Mathilde havia anos antes brincado com os filhos.

Essa cena abre, com força, o romance “Vejam Como Dançamos”, da franco-marroquina Leïla Slimani. Está ali a mensagem central do texto, que explora as transformações sociais dessa família. A piscina marca sua transição rumo à classe média depois de anos de lavoura. Sublinha também a ideia de uma identidade desenraizada -a francesa Mathilde se sente transplantada no Marrocos.

Slimani é uma das autoras mais renomadas da França. Seu livro “Canção de Ninar” ganhou em 2016 o Prêmio Goncourt, o mais importante do mundo de fala francesa. No ano seguinte, foi nomeada representante oficial para os assuntos francófonos, um cargo com status de diplomata.

O nome de Slimani vai circular bastante no Brasil nos próximos anos. Está em andamento a produção de um filme da Globoplay inspirado em seu livro “No Jardim do Ogro”, de 2014, com Alice Braga.

O romance “Vejam Como Dançamos” é a segunda parte de uma ambiciosa trilogia inspirada na família de Slimani. A primeira foi “O País dos Outros”, que saiu no ano passado no Brasil. A terceira e última, “Levei o Fogo Comigo”, está programada para chegar por aqui em 2026.

É, no conjunto, o trabalho mais maduro de Slimani. Os livros começam nos anos 1940 e acompanham por décadas a vida de Mathilde, seu marido Amine, seus filhos e seus vizinhos. Segue em paralelo a história do Marrocos, que passou por grandes transformações estruturais.

“Vejam Como Dançamos” é bem mais interessante do que o primeiro volume da trilogia, em que a história se arrastava e demorava para criar raízes. Ajuda o fato de que o livro se passa nos anos 1960, um momento mais emblemático da história do país, marcado pela repressão do rei Hassan e por uma abertura cultural.

ISso é evidente, por exemplo, na construção da piscina, uma cena improvável anos antes no interior do Marrocos. “No país que durante séculos vivera da terra e da guerra, já não se falava em outra coisa senão em cidade e progresso”, diz o texto.

Slimani, ainda bem, evita o didatismo para tratar dessas questões. Da mesma forma, ela não explicita a sua mensagem sobre a justaposição das identidades francesa e marroquina expressa no casamento de Mathilde.

A mistura da França com o norte da África é central no debate público francês desde o século 20. O país, vale lembrar, colonizou Marrocos, Argélia e Tunísia e depois recebeu uma onda de imigrantes daqueles países. A entrada de norte-africanos motivou um sem-fim de discussões sobre o que significa ser francês. Famílias de origem marroquina, argelina e tunisiana enfrentam racismo a partir da ideia de que não são tão francesas como as demais.

Essa conversa aparece de maneira sutil e genial em “Vejam Como Dançamos”. Mathilde nasceu na França, se casou com um marroquino e fala árabe fluente. Seu marido Amine entrou para um clube de elite francês. Seu filho Selim nasceu no Marrocos, mas é loiro, traço que o distingue dos conterrâneos. Sua filha Aïcha se casou com um judeu.

Com tudo isso, a fronteira entre francês e marroquino vai se complicando. Slimani parece perguntar, a cada página, o que constitui a identidade de uma pessoa. Pode ser o local de nascimento, a língua, o status social, a fisionomia, a religião -ou nada disso, sugere.

A trilogia impressiona pelo fôlego de acompanhar gerações de uma só família, em um esforço parecido com o da trilogia do egípcio Naguib Mahfouz, o único autor de língua árabe a receber o Nobel da Literatura.

Slimani troca de cenário, passando por cidades como Meknes, Rabat e Essaouira. Muda também de narrador, apresentando pontos de vista complementares e conflitantes. Esse talvez seja um de seus pontos mais vulneráveis, cansando o leitor, que peleja para se apegar a um dos inúmeros personagens que vão se alternando no livro.

Dito isso, a autora escreveu uma trilogia inescapável para quem se interessa pelas literaturas da França e do Marrocos. Até nisso parece confundir as classificações -produziu um texto que se refere ao mesmo tempo a duas culturas que costumam aparecer divorciadas na ficção.

VEJAM COMO DANÇAMOS

Avaliação Ótimo

Preço R$ 69,90 (144 págs.); R$ 46,90 (ebook)

Autoria Diogo Bercito

Editora Intrínseca

Tradução Dorothée de Bruchard