SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Emendas parlamentares individuais de deputados federais e senadores pagaram por uma série de obras e ações com suspeita de superfaturamento e outras irregularidades, segundo relatório da CGU (Controladoria-Geral da União).

Entre os casos citados no documento estão a instalação irregular de forros de isopor no Hospital Maternidade de São João de Meriti (RJ), a aquisição não comprovada de R$ 1,8 milhão em combustível por um ex-prefeito de Sena Madureira (AC), marido da deputada federal que encaminhou o recurso, e uma van que pode ter servido a eventos de uma igreja em Iracema (RR).

O relatório da CGU levou o ministro Flávio Dino, do STF (Supremo Tribunal Federal), a suspender o envio de emendas com indícios de irregularidades a essas e outras sete cidades.

O documento tem 647 páginas e analisou de agosto de 2024 ao mesmo mês de 2025 a execução de emendas individuais —ou emendas Pix— nos dez municípios que mais receberam recursos do gênero. Única a apresentar dados satisfatórios, São Paulo não foi atingida pela medida.

Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que os problemas encontrados não se restringem aos municípios auditados e que o Brasil não tem controle sobre a execução das emendas.

No Hospital Maternidade, por exemplo, o forro de isopor foi detectado quando os técnicos da CGU fizeram diligência presencial no local. O relatório diz que a Prefeitura de São João do Meriti deve pedir devolução da verba. O município recebeu R$ 58 milhões em emendas no período.

Em nota, o prefeito Léo Vieira (Republicanos) disse que assumiu o comando da cidade com uma dívida de R$ 1,04 bilhão e que “os bloqueios determinados pelo STF irão impactar de forma significativa o funcionamento de serviços essenciais” e que deve auditar a aplicação dos recursos.

Os recursos à cidade fluminense foram enviados por três ex-deputados, Márcio Labre (PL), Gelson Azevedo (PL) e Lourival Gomes (PP), além do deputado federal Áureo Ribeiro (Solidariedade).

A reportagem não conseguiu contato com o primeiro. Gomes pediu à reportagem que entrasse em contato com a assessoria, que não respondeu. Áureo, por sua vez, afirmou que atuou apenas na indicação da emenda e não tem nem nunca teve ingerência sobre a utilização da verba.

Em Sena Madureira, a prefeitura não comprovou à CGU gastos de R$ 1,8 milhão com combustíveis adquiridos com emendas, uma das quais enviadas pela deputada federal Meire Serafim (União), mulher do prefeito à época, Mazinho Serafim (Podemos).

A parlamentar disse que ela e o esposo já prestaram esclarecimentos e que o atual titular do Executivo é que não respondeu a CGU. Os demais recursos vieram de Márcio Bittar (PL), cujo gabinete disse à reportagem que não podia passar o contato da assessoria, e do ex-deputado Flaviano Melo, morto em 2024.

A Folha procurou o município para comentar o assunto e, em resposta, a prefeitura enviou decisão do STF esclarecendo que os repasses suspensos são apenas aqueles relacionados às emendas sob investigação.

Na capital do Rio, verba indicada pelo ex-deputado Marcelo Calero (PSD) foi utilizada por ele mesmo ao assumir a Secretaria de Cultura, em 2023. Os recursos financiaram reformas em teatros municipais com indícios de superfaturamento de R$ 201 mil, diz a CGU.

À reportagem, Calero e a gestão Eduardo Paes (PSD) afirmaram que os valores apontados representam menos de 2% do total das emendas. Disseram também ter demonstrado ao órgão que não houve irregularidade e que “a formação de preço seguiu rigorosamente o sistema da prefeitura, elaborado pela FGV”.

Em Iracema (RR), a CGU encontrou uma lista de presença de um curso da Assembleia de Deus dentro de um consultório odontológico móvel, uma van adquirida com emenda do ex-senador Telmário Mota (sem partido). Além da lista, o para-brisa continha adesivo que autorizava o veículo a entrar em evento da igreja Assembleia de Deus. “Não há explicação”, diz a CGU.

Procurada, a Assembleia de Deus do Brasil afirmou que não vai se manifestar.

À reportagem, a defesa de Mota afirmou que ele destinou recursos a todos os municípios de Roraima e nunca condicionou a liberação a determinada contratação.

Disse também que o ex-senador, que está em prisão domiciliar e recorre de condenação por homicídio qualificado, vai cobrar informações sobre o destino de mais de R$ 20 milhões que mandou a cidades de seu estado.

Em Carapicuíba (SP), a análise dos R$ 150 milhões recebidos no período foi prejudicada, diz a CGU, “pela ausência de informações precisas sobre quais despesas foram contempladas com recursos”.

Em um dos casos, a prefeitura só comprovou R$ 3,2 milhões em gastos relacionados a uma emenda de R$ 9 milhões do deputado federal Vinícius Carvalho (Republicanos). A assessoria do parlamentar não respondeu nos dois dias em que foi contatada.

A prefeitura afirmou que “a citação de Carapicuíba não significa que o município tenha incorrido em crime relacionado às emendas especiais”. Disse ainda que a cidade cresceu de forma desordenada nos últimos anos e que “emendas têm sido fundamentais ao seu desenvolvimento”.

Professor assistente de direito administrativo na PUC-SP, o advogado José Jerônimo Nogueira diz que os problemas encontrados são uma amostra do que ocorre no país. “Com as emendas de relator não conseguíamos rastrear o recurso. Agora temos o destino, mas é difícil fiscalizar a execução da verba”, afirma. Para ele, a auditoria deveria ser estendida.

Se isso vier a ocorrer, “será uma oportunidade de o Brasil recolocar a Constituição nos trilhos”, diz o advogado Rafael Valim, autor de uma das ações que contesta a constitucionalidade das emendas pelo escritório Warde, de Brasília.

Para ele, o aspecto impositivo (obrigatório) da verba desfigurou a separação de poderes e “retirou do Executivo, independentemente se de direita ou esquerda, parcela significativa das despesas discricionárias”. O Congresso sustenta que o modelo garante participação das minorias políticas no orçamento.

Daí a avaliação do advogado Antonio Carlos de Freitas Junior, doutor em direito constitucional e professor de estudos avançados da Universidade de Santo André, de que parlamentares assumiram o papel da destinação de recursos antes reservado ao Executivo. “Um prefeito que busca verba não vai hoje ao governo estadual ou ao federal. Vai a um deputado”.

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VEJA TODAS AS EMENDAS CITADAS NO RELATÓRIO DA CGU E SEUS AUTORES:

Cidade – Autor da emenda – Valor – O que diz o parlamentar

Camaçari (BA) – Félix Mendonça Júnior (PDT) – R$ 6.599.624,50 – Deputado afirma que emenda teve plano de ação aprovado, foi fruto de articulação política e execução do recurso cabe à prefeitura de Camaçari

Cacá Leão (PP) – R$ 7.000.000,00 – Procurado por meio da assessoria, não respondeu

Carapicuíba (SP) – Alexandre Frota (PDT) – R$ 22.662.883 – Reportagem não conseguiu falar com ex-deputado

Marco Feliciano (PL) – R$ 23.933.674 – Gabinete do parlamentar foi procurado mais de uma vez durante dois dias, mas ninguém atendeu

Vinícius Carvalho (Republicanos) – R$ 11.404.464 – Procurado via assessoria durante dois dias, não se manifestou

Coração de Maria (BA) – Ângelo Coronel (PSD) – R$ 5.000.000,00 – Senador diz que execução dos recursos é responsabilidade exclusiva da administração municipal e que não tem ingerência sobre verba

Neto Carletto (Avante) – R$ 8.635.000 – Gabinete do parlamentar foi procurado mais de uma vez durante dois dias, mas ninguém atendeu

Iracema (RR) – Antonio Nicoletti (União Brasil) – R$ 3.000.000,00 – Gabinete do parlamentar foi procurado mais de uma vez durante dois dias, mas ninguém atendeu

Hiran Gonçalves (PP) – R$ 1.500.000,00 – Procurado via assessoria, não se manifestou

Jhonatan de Jesus – R$ 800.000 – Hoje ministro do TCU, não retornou aos e-mails; houve confirmação de leitura

Telmário Mota (sem partido) – R$ 2.096.950,00 – Diz que não tem conhecimento da aplicação dos recursos enviados e que vai cobrar providências para saber o destino da verba nesse e outros municípios

Macapá (AP) – Lucas Barreto (PSD) – R$ 17.241.907,85 – Procurado via assessoria em duas ocasiões, não se manifestou

Vinícius Gurgel (PL) – R$ 6.400.000,00 – Deputado diz não possuir equipe técnica para avaliar emendas individualmente e que sua missão é levar melhorias ao Amapá

Rio de Janeiro (RJ) – Jones Moura (PSD) – R$ 6.326.059,00 – Reportagem não localizou parlamentar

Marcelo Calero (PSD) – R$ 7.147.655,00 – Ex-deputado diz ter demonstrado que não houve irregularidade e que valor contestado equivale a menos de 2% do total repassado

Romário (PL) – R$ 4.803.747,00 – Senador afirma que sua responsabilidade sobre as emendas se encerra na indicação delas e que execução e fiscalização cabem ao beneficiário

Sena Madureira (AC) – Flaviano Melo – R$ 8.146.046,00 – Ex-deputado, ele morreu no ano passado

Márcio Bittar (União Brasil) – R$ 11.300.000,00 – Reportagem telefonou ao gabinete do senador, que não deu mais retorno. No dia seguinte, voltou a ligar até o escritório. A atendente não passou o telefone

Meire Serafim (União Brasil) – R$ 10.804.665,87 – Deputada afirma que problema é da atual gestão municipal e que ela já esclareceu despesas à Controladoria-Geral da União

São João de Meriti (RJ) – Áureo Ribeiro (Solidariedade) – R$ 9.472.770 – Deputado diz que apoia inteiramente atuação dos órgãos investigativos e se coloca à inteira disposição para colaborar com as apurações

Gélson Azevedo (PL) – R$ 7.229.209 – Ex-deputado diz que atuou apenas para liberar os recursos ao município e não tem ingerência sobre como são aplicados os recursos

Lourival Gomes (PP) – R$ 6.516.835 – Ex-deputado foi procurado, mas não se manifestou

Márcio Labre (PL) – R$ 12.552.889 – Reportagem não localizou ex-deputado

São Luiz do Anauá (RR) – Mecias de Jesus (Republicanos) – R$ 2.200.682 – Senador diz que execução das emendas é responsabilidade do Executivo, a quem cabe licitar, contratar, executar e prestar contas

Shéridan Oliveira (sem partido) – R$ 10.951.699 – Reportagem não localizou ex-deputada

Telmário Mota (sem partido) – R$ 26.818.337 – Diz que não tem conhecimento da aplicação dos recursos enviados e que vai cobrar providências para saber o destino da verba nesse e outros municípios