SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quanto mais cedo for iniciado o tratamento contra a intoxicação por metanol em bebidas adulteradas, maiores as chances de reverter os danos neurológicos e visuais, alertam especialistas.
O metanol é um álcool incolor parecido com o etanol (presente em bebidas alcoólicas). Conhecido como álcool metílico, é amplamente utilizado na indústria e em contexto comercial como componente de removedores de tinta, vernizes, solventes e até alguns perfumes. Tóxico até em pequenas quantidades, seu uso em bebidas é proibido.
Devido aos casos de intoxicação se multiplicando pelo país, a reportagem elencou as principais informações sobre a ingestão da substância.
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Qual a diferença entre o metanol e o etanol presente nas bebidas alcoólicas?
Segundo Mariana de Moura Pereira, pesquisadora do Laboratório de Toxicologia da Faculdade de Medicina da USP, diferenciar um do outro na hora de beber é praticamente impossível.
“O que ajuda a diferenciar é o começo dos sintomas da intoxicação por metanol. Ambos são metabolizados no fígado pelo corpo humano. Os dois passam por um processo de oxidação. O etanol forma um produto que não é tóxico para o organismo, diferente do metanol que leva à formação de dois produtos tóxicos: o formaldeído e o ácido fórmico”, explica Mariana.
“Quando a pessoa ingere uma bebida que contém metanol e etanol, os dois competem entre si por uma das enzimas que faz parte do metabolismo. E essa enzima tem mais afinidade pelo etanol, que foi considerado um dos antídotos (não o melhor) que pode ser utilizado na fase de tratamento”.
O etanol atenua os efeitos do metanol no organismo?
Não atenua, mas retarda um pouco a produção do ácido fórmico.
É correto afirmar que o ácido fórmico é um veneno para o organismo?
Sim. É uma substância tóxica. O ácido fórmico é um produto do metabolismo do metanol. O fígado trabalha para metabolizar o que é ingerido, seja bom ou ruim.
Como o ácido fórmico é retirado do corpo?
Hemodiálise é a forma mais segura e rápida para eliminar ácido fórmico do sangue. E tomar o antídoto adequado ou utilizar o método escolhido pelo médico. O fomepizol é um inibidor específico da enzima que começa esse processo de transformação do metanol em ácido fólico.
Pessoas idosas e com comorbidades intoxicadas com metanol têm evolução para gravidade de forma mais rápida?
Depende do metabolismo, que perde ritmo ao longo do envelhecimento. Quando a pessoa tem comorbidades, já sofre um processo de deterioração e a acidose metabólica pode causar um quadro mais grave.
Por que algumas pessoas evoluem para gravidade e outras não?
Depende da quantidade de bebida com metanol consumida e do tempo que levou para buscar atendimento médico. “Quanto mais você consumiu, mais ácido fórmico vai ser formado, mais acidose metabólica, mais dano no tecido, mais dano celular”, diz Mariana.
Como diferenciar a ressaca comum do início de uma intoxicação por metanol?
De acordo com a pesquisadora, ao observar os sintomas. Na ressaca, a pessoa acorda com dor de cabeça, náuseas. Quando a intoxicação é causada pelo metanol, os sintomas aparecem acompanhados da visão borrada, turva, de dores abdominais. A visão é o principal sinal.
O bicarbonato de sódio atenua os efeitos do metanol no corpo?
A ação do composto injetado é corrigir a acidose metabólica. “O ácido fórmico não deixará de existir no organismo com o uso do bicarbonato. Ele é usado mais como maneira de ganhar tempo. O médico injeta o bicarbonato como primeira parte do atendimento”, comenta.
Como o metanol é detectado no sangue?
Pela cromatografia gasosa. “É uma separação de substâncias. Pegamos uma amostra do sangue do paciente, colocamos no equipamento de cromatografia gasosa com detector de ionização, conhecido como GC-FID (cromatógrafo a gás com detector de ionização de chama). A amostra é aquecida, passa por um processo de injeção mecânica e várias etapas até sair separada. Tudo o que tiver de contaminante no sangue é registrado. No caso do metanol, o tempo de retenção e a área sob o pico do sinal são analisados para identificar a presença e quantificar a substância na amostra de sangue.
É possível adulterar vinho e cerveja com metanol?
Sim, se a contaminação for intencional. Os casos investigados até o momento estão relacionados aos destilados, como gin, vodca e uísque.
SAIBA O QUE ACONTECE HORA A HORA APÓS A INTOXICAÇÃO COM METANOL
Nas primeiras 12 horas após a ingestão, os sintomas podem confundir porque se assemelham aos de uma bebedeira comum, o que pode retardar a busca por atendimento médico.
Nessa fase, a pessoa pode sentir náuseas, dor abdominal, tontura e dor de cabeça. O organismo interpreta o metanol de forma parecida ao etanol, mas exames de sangue já podem detectar alterações importantes que indicam que o organismo começa a sofrer danos. Por isso, o atendimento rápido é crucial, segundo Luís Fernando Penna, gerente médico do pronto-atendimento do Hospital Sírio-Libanês.
Desde que começou a crise do metanol, o hospital tem atendido todos os casos de intoxicação alcoólica como suspeitos.
“Imediatamente o paciente começa a ser hidratado e passa por uma série de exames para avaliar entre outras coisas, funções renal e hepática, além da gasometria arterial [que avalia parâmetros como função pulmonar e oxigenação do organismo].”
O mesmo tem ocorrido no Einstein Hospital Israelita. “É um atendimento prioritário, porque se for mesmo uma intoxicação, o atendimento tem que ser muito rápido”, diz a infectologista Paula Tuma, diretora de qualidade e segurança do Einstein.
O cuidado se justifica porque à medida que o fígado começa a trabalhar, e o metanol passa a ser metabolizado pela enzima álcool desidrogenase (a mesma que atua sobre o etanol), começam a se acumular os compostos tóxicos.
Em até 24 horas, o fígado “fabrica”, por exemplo, o ácido fórmico, que inibe a produção de energia nas mitocôndrias das células. Tecidos que precisam de mais energia (como os nervos e a retina) são os primeiros a ser afetados.
Segundo a literatura médica, entre 12 e 24 horas após a ingestão da bebida contaminada por metanol, é comum aparecer visão borrada, fotofobia e até a sensação de enxergar pontos luminosos.
O nervo óptico sofre pela falta de energia das mitocôndrias e pela degeneração das fibras nervosas, o que pode levar à perda visual irreversível.
Nesse período, pode se instalar também a acidose metabólica, uma condição em que o sangue fica excessivamente ácido, levando à respiração acelerada, fraqueza, confusão mental e sobrecarga no coração e nos pulmões.
“Esse é o grande problema da intoxicação pelo metanol. É pela acidose que começa todo o processo de alteração de fundo de olho, vista, visão, quadro neurológico e perda de função renal”, explica Penna.
“Identificada a acidose, começa-se a correção e daí vai para a unidade de terapia intensa”, reforça Paula Tuma, do Einstein.
Se isso não tratado, em até 48 horas a pessoa pode ficar cega. O ácido fórmico também atinge o sistema nervoso central, podendo causar convulsões, rebaixamento de consciência e arritmias cardíacas.
Nessa fase, também há risco de sofrer falência de múltiplos órgãos. Coração, pulmões e rins entram em colapso progressivo. Nesse momento, o risco de morte é alto, mesmo que a pessoa esteja em tratamento.
O tratamento para intoxicação por metanol inclui o uso de antídotos como o fomepizol (que bloqueia a enzima que inicia a metabolização tóxica) ou o próprio etanol, além de medicamentos para controlar outros sintomas, como crise convulsiva. Em casos graves, é necessária a hemodiálise para remover rapidamente o metanol e seus metabólitos do organismo.