SÃO PAULO, SP, E RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – A decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que tornou parcialmente inconstitucional o Marco Civil da Internet completou 104 dias nesta quarta-feira (8) sem que o acórdão tenha sido publicado.
Segundo levantamento da Folha de S.Paulo, é quase o dobro da média do prazo de publicação de acórdãos de decisões em casos de repercussão geral no Supremo entre 2020 e 2025, que ficou em 56,7 dias.
A demora é atípica. Apenas 12,91% dos 364 acórdãos analisados no período levaram mais de 104 dias para serem publicados.
O regimento do próprio STF determina, desde 2020, que “salvo motivo justificado”, a publicação no Diário da Justiça deve ser feita no prazo de 60 dias a partir da sessão em que tenha sido anunciado o resultado do julgamento. Mesmo descontado o recesso do Judiciário, que foi de 2 a 31 de julho, a publicação do acórdão estourou o prazo.
O acórdão é o documento publicado após a decisão colegiada dos ministros que contém um relatório sobre o processo, fundamentação das decisões e as teses finais acordadas pela maioria.
Ministros do STF ouvidos pela reportagem negam que o atraso tenha relação com as pressões do presidente americano Donald Trump.
Trump mencionou a regulação das plataformas de internet ao impor tarifas de 50% sobre produtos brasileiros, em julho.
A decisão do Supremo sobre o Marco Civil é alvo da investigação da seção 301 aberta pelo Escritório Comercial da Casa Branca (USTR), que pode resultar em mais sanções contra o Brasil.
“O Supremo Tribunal Federal brasileiro recentemente votou para responsabilizar as empresas de mídias sociais por publicações ilegais de seus usuários, mesmo na ausência de uma ordem judicial para remover esse conteúdo […] Esse regime poderia desencadear a remoção preventiva de conteúdo […] além de aumentar significativamente o risco de danos econômicos às empresas americanas de mídias sociais”, diz o documento de abertura da investigação 301.
Na visão de um integrante do governo federal, a publicação do acórdão neste momento poderia atrapalhar a recente reaproximação entre Trump e Lula.
Segundo ministros do STF e alguns advogados, a demora é atípica, mas se justifica, pois se trata de um caso complexo. A reportagem apurou que 3 dos 11 ministros do STF ainda não liberaram seus votos finais, etapa necessária para elaboração do acórdão.
“Houve grandes divergências entre os ministros sobre diversos pontos, é razoável que eles levem tempo para ajustar seus votos”, diz Eloísa Machado, professora de direito na FGV-SP e coordenadora do Supremo em Pauta.
Mas ela afirma acreditar que a natureza da decisão também tem um peso. “Trata-se de um caso sobre temas não triviais, muito complexos, em discussão no Brasil e no mundo, somado a alta temperatura política; estão envolvidos interesses de empresas muito poderosas.”
Eloísa ressalta ser necessário maior esforço para se chegar a acordo. “Não é só decidir se uma lei é constitucional ou não, e somar os votos a favor e contra e chegar a um acórdão.”
Em sua decisão de 26 de junho, o Supremo fixou diversas teses que aumentam a responsabilidade das big techs por publicações de terceiros.
Caso uma publicação configure crime ou ato ilícito, basta uma notificação privada, extrajudicial, para que a plataforma seja passível de responsabilização se não remover o conteúdo.
Para todo o resto ainda vale o artigo 19 do Marco Civil da Internet, ou seja, é necessário ter ordem judicial e aí se incluem crimes contra a honra.
Além disso, o STF instituiu uma espécie de dever de cuidado, uma lista de tipos de conteúdo que devem ser removidos de forma pró-ativa pelas plataformas. Nesse caso, as big techs só podem ser responsabilizadas se houver descumprimento generalizado, e não esparso. E a corte também previu responsabilidade sem notificação no caso de conteúdo impulsionado e anúncios.
Teses de repercussão geral do Supremo passam a valer a partir da publicação da ata do julgamento, sem a necessidade do acórdão. Mas a não publicação do acórdão gera instabilidade jurídica.
Na semana passada, por exemplo, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu sobre um caso contra o Google em que a autora da ação pedia a aplicação imediata das teses definidas em junho pelo Supremo.
O STJ decidiu que “ainda não convém” aplicar, nos casos tramitando no tribunal, as teses definidas pelo STF.
Segundo o STJ, “ainda que não seja necessário o trânsito em julgado […] para que o tema de repercussão geral tenha aplicação imediata”, é prudente aguardar o acórdão “para garantir a segurança jurídica em vista de possíveis modificações da tese vinculante ou modulações de efeitos decorrentes de embargos de declaração”.
O ministro Luís Roberto Barroso, que deixou a presidência do STF no final de setembro, exaltou em julho a decisão sobre o Marco Civil da Internet dizendo que ela “foi extremamente equilibrada e moderada” e “um movimento exemplar para o mundo de maneira geral”.
Segundo plataformas de internet, já há várias ações judiciais (ainda sem decisão) e notificações extrajudiciais pedindo a aplicação imediata das teses do Supremo. Não está claro como isso será analisado por tribunais inferiores.
As empresas planejam entrar com embargos de declaração para que o Supremo esclareça vários pontos das teses. Mas só após a publicação do acórdão é que as plataformas podem entrar com embargos.
De acordo com Rafael Mafei, professor de direito na USP e na ESPM, o atraso no acórdão reduz a eficácia da decisão. “Isso prejudica decisões nas instâncias inferiores, muitos estão esperando o acórdão para decidirem”, diz.
Já Ademar Borges, professor de direito constitucional do IDP, afirma que a ausência de acórdão não deveria impedir a aplicação imediata das teses, uma vez que, segundo ele, não haverá mudanças significativas com os embargos de declaração.