BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A Norte Energia, concessionária responsável pela hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, trava um embate direto com o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) sobre a definição de qual será, afinal, a vazão de água no rio Xingu, seis anos após a usina entrar em operação plena.

No mês passado, a concessionária enviou um recurso administrativo ao Ibama, pedindo que o órgão suspenda sua solicitação para rever as regras de liberação de água na chamada Volta Grande do Xingu, um trecho de 130 km do rio localizado ao redor da usina.

O local, conforme já constatado pelo Ibama e denunciado pelo Ministério Público Federal, passou a sofrer com graves problemas socioambientais após o controle de vazão imposto pela hidrelétrica, que prioriza seu reservatório para a geração de energia.

Em novembro, acaba o período de teste de seis anos que deve determinar qual o regime das águas mais indicado para a região -território onde vivem, ao menos, 42 comunidades, entre ribeirinhos e indígenas, com pelo menos 3.000 pessoas.

O impasse sobre qual deve ser a liberação de água pela barragem de Belo Monte levou empresa e governo a buscarem o chamado “hidrograma de consenso”.

Por meio desse acordo, ficou acertado que, de novembro de 2019 a novembro de 2025, seriam testados dois cenários: o hidrograma A, com menor liberação de água no trecho e maior geração de energia; e o hidrograma B, com maior vazão de água e mais protetivo ao ambiente, mas uma produção menor de energia.

A partir dos resultados coletados entre os dois cenários se chegaria, enfim, a um consenso. O fato, porém, é que, seis anos depois, não há nenhum entendimento.

O Ibama quer que a empresa apresente um novo cenário de vazão para o rio, mas já determina que o cenário A está completamente descartado, por ter se mostrado muito severo quanto a impactos socioambientais.

No hidrograma A, o volume de água liberado para a Volta Grande do Xingu chega a de 4.000 m³/s (metros cúbicos por segundo) em meados de abril, quando a vazão normal do rio poderia ser de 25 mil m³/s. Já no cenário B, o volume praticado é de 8.000 m³/s.

A Norte Energia acusa o Ibama de ter desconsiderado informações recentes fornecidas pela própria usina e diz que o órgão teria se baseado em relatórios antigos e estudos externos não previstos no processo regulatório.

“Nenhum dos mencionados documentos dispõe de fundamentos suficientes para justificar, por si só, a revisão do hidrograma de consenso ou a vedação do hidrograma A”, afirma a Norte Energia, no pedido enviado ao Ibama.

A empresa diz que o órgão “pretende adotar um hidrograma diverso daquele definido ao longo de todo o processo de licenciamento ambiental e também do edital do leilão” e que a “equipe técnica do Ibama vem incluindo em suas análises os resultados de estudos apresentados pela sociedade, cabendo à empresa incorporar ou refutar tecnicamente os dados que levaram à sua formulação”.

A concessionária provoca, ainda, o apoio indireto do TCU (Tribunal de Contas da União), que em agosto recomendou ao Ibama que dialogue com o Ministério de Minas e Energia, a Agência Nacional de Energia Elétrica, a Empresa de Pesquisa Energética e o Operador Nacional do Sistema Elétrico antes de alterar o regime de águas.

Newsletter Planeta em Transe Uma newsletter com o que você precisa saber sobre mudanças climáticas *** Do lado do Ibama, a posição é absolutamente oposta. Para o órgão, há evidências contundentes de que os hidrogramas atuais, mesmo o mais protetivo (B), não garantem a sobrevivência adequada do ecossistema da Volta Grande, nem a subsistência de comunidades ribeirinhas e indígenas que dependem da pesca e do pulso natural do rio.

No ofício de setembro, o instituto foi enfático ao proibir a adoção do hidrograma A, considerado altamente danoso, exigindo que a nova proposta incorpore recomendações técnicas.

Em 2021, o Ibama havia imposto um hidrograma provisório, com liberações mais altas de água, após constatar que os cenários originais (A e B) não protegiam o rio.

A medida reduziu parte dos impactos ambientais, mas, segundo o setor elétrico, teve efeitos econômicos imediatos. De acordo com dados do TCU, os custos extras para geração de energia com outras fontes somaram R$ 771 milhões apenas no mês de janeiro de 2021. Os cálculos oficiais indicaram que, mantido o regime provisório, as contas de luz poderiam subir até 1,7%.

Belo Monte é a maior hidrelétrica 100% brasileira e a quinta maior do mundo. Sua capacidade instalada é de 11.233 megawatts, equivalente a 5,3% da potência instalada total da matriz elétrica do Brasil, com seus 209.905 megawatts.

Procurada pela reportagem, a Norte Energia disse que o prazo de seis anos de teste do hidrograma atual foi estabelecido nos atos do licenciamento ambiental, mas que, “diante de determinações do Ibama, que surgiram ao longo do processo, a Norte Energia ficou impedida de testar o hidrograma de consenso, com alternância entre o A e o B, tal como previsto”.

Segundo a concessionária, o hidrograma atual foi desenvolvido com base em 11 cenários hidrológicos distintos, avaliados no EIA (Estudo de Impacto Ambiental) da usina, e que se mostrou a melhor alternativa para equilibrar demanda energética e exigências socioambientais.

A empresa destacou ainda que, conforme pedido do TCU, “qualquer eventual alteração no hidrograma de consenso deve levar também em consideração o parecer de órgãos técnicos, a geração de energia, a segurança energética e os custos para os consumidores”.

O Ibama respondeu à Folha que o recurso apresentado pela concessionária ainda será analisado. O órgão ambiental afirmou que o licenciamento prévio da usina, de 2010, já destacava que o hidrograma que seria usado tinha caráter de teste e que previa a possibilidade de revisão das vazões após o início de operação da usina.

“Assim, já era de conhecimento público que a hidrelétrica Belo Monte poderia gerar menos energia do que aquela autorizada na licença de operação”, afirmou.

O processo de licenciamento, segundo o órgão, também é claro ao afirmar que, “a qualquer momento, o Ibama pode rever seus atos no processo, mediante motivação, quando há risco ambiental”.

“Portanto, não havia um direito adquirido de operar o hidrograma de consenso por seis anos consecutivos, com a alternância de vazões”, declarou. “Essa avaliação caberia ao Ibama.”