SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Brasil e Israel vivem uma crise diplomática sem precedentes. Ainda que a relação, ao longo da história, tenha sido marcada por aproximações e distanciamentos alinhados com os governos de plantão, a gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) consolidou-se como uma das vozes mais críticas à campanha militar israelense em Gaza.
Na avaliação de especialistas ouvidos pela Folha de S.Paulo, o posicionamento reflete a polarização em torno do tema no Brasil e o desejo de Lula de agradar à base política e projetar o país internacionalmente.
A chegada do líder petista Lula ao poder marcou gestos importantes em prol da causa palestina. Em 2003, o Brasil abriu um escritório de representação em Ramalah e, em 2010, reconheceu oficialmente o Estado da Palestina dentro das fronteiras de 1967.
Ao mesmo tempo em que dava essas sinalizações, porém, Lula mantinha uma narrativa de defesa do multilateralismo. Ainda em 2003, ele participou da festa de comemoração dos 50 anos do Clube Hebraica, em São Paulo. Em 2010, no último ano de seu segundo mandato, foi a Israel, na primeira visita de um chefe de Estado brasileiro à região desde dom Pedro 2º, que em 1876 fez uma longa viagem por Palestina, Síria e Líbano. Na agenda, o presidente esteve no Museu do Holocausto (Yad Vashem), que homenageia os cerca de 6 milhões de judeus mortos pelo nazismo.
Um ano antes, Lula havia sido criticado pela comunidade judaica por ter recebido o então presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, um negacionista do Holocausto. “Os governos Lula 1 e 2 têm uma tendência mais pró-árabe, mas na prática foi muito mais equidistante, com essa narrativa dos interesses [do Brasil] acima de tudo”, diz Monique Sochaczewski, professora de relações internacionais do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa).
Foi com sua sucessora, Dilma Rousseff (PT), que Tel Aviv protagoniza a primeira grande rusga pública na relação mais recente. Em 2014, após o Itamaraty condenar uma ofensiva militar de Israel em Gaza que deixou centenas de mortos, um porta-voz da chancelaria israelense chamou o Brasil de irrelevante no plano internacional e de “anão diplomático”.
Já a gestão de Jair Bolsonaro (2019-2022) inverteu o eixo e adotou uma política de alinhamento inédito a Israel. Em 2019, o então presidente fez uma viagem oficial ao país do Oriente Médio, em que foi recebido pelo próprio Binyamin Netanyahu no aeroporto, num gesto raro do premiê. Um ano depois, Bolsonaro disse que transferiria até 2021 a sede da embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém. O gesto diplomático, que simbolizaria o reconhecimento de Jerusalém como capital israelense (algo que a maioria dos países não o faz), acabou não se concretizando.
No primeiro ano da volta de Lula ao Planalto, os ataques terroristas do Hamas de 7 de outubro de 2023 representariam uma inflexão na relação do petista com Israel. O governo brasileiro condenou as ações da fação palestina, mas passaram-se 13 dias até que Lula usasse o termo “terrorismo” para qualificar os atentados do Hamas.
O presidente foi cobrado por essa demora por parte das instituições judaicas no Brasil. “Lula ainda se recusa a chamar o Hamas de grupo terrorista, sob a argumentação de que a ONU reconhece outros grupos [como terroristas]. É incoerente, já que ele mesmo fala que quer reformar a ONU”, diz o cientista político André Lajst, presidente-executivo da ONG pró-Israel StandWithUs Brasil.
Apesar da tensão já evidente, Lula ainda se encontrou com o presidente de Israel, Isaac Herzog, em dezembro de 2023, durante a COP28, em Dubai. Então com quase dois meses de guerra, Lula publicou um post com discurso ainda equidistante. “Ontem conversei com o presidente de Israel, Isaac Herzog, sobre a liberação de reféns e a urgência da paz na região. O Brasil segue empenhado em colaborar para o fim do conflito no Oriente Médio.” Desde então, Lula não teve nenhuma agenda oficial com uma autoridade israelense.
O caldo entornou de vez quando, em fevereiro de 2024, o presidente comparou a ofensiva israelense em Gaza ao Holocausto, o que levou Israel a declará-lo “persona non grata”. O governo brasileiro, então, chamou de volta seu embaixador em Tel Aviv, Frederico Meyer, depois de este ser chamado ao Museu do Holocausto e exposto a uma reprimenda pública pelo então chanceler israelense, Israel Katz. O Brasil até hoje não enviou um substituto para o cargo. Na outra ponta, Israel retirou sua indicação de embaixador em Brasília após meses em que o Planalto decidiu segurar o aval à nomeação de Gali Dagan.
Para Lajst, as falas recorrentes de Lula contra Israel e as acusações de genocídio em Gaza, como no discurso na Assembleia-Geral da ONU deste ano, seguem uma agenda internacional. “É uma tentativa de mostrar independência dos EUA e de ser um líder do Sul Global. Há uma visão meio anacrônica, de Guerra Fria. Existe ainda pressão interna das alianças do governo, já que essa pauta virou bandeira da esquerda mundial.” Na opinião do presidente da StandWithUS Brasil, o presidente “tem atitudes antissemitas e não se preocupa em inflamar o antissemitismo no Brasil”.
Sochaczewski diz que a guinada pró-palestina de Lula “joga para os progressistas que o apoiam”. “Quem está trazendo soluções são os países dos emirados, do Golfo. Este plano do Trump pode trazer uma solução. E o Brasil perdeu aquela capacidade de sua diplomacia de ser ouvido como um país que falava com todo mundo.”
Procurado sobre a relação do governo com Israel, o Itamaraty não quis comentar.
Histórico Brasil-Israel tem aproximações e distanciamentos
Antes dos anos Lula, a relação entre Brasil e Israel foi marcada por altos e baixos. O primeiro marco, e talvez o mais simbólico, é de 1947, quando o diplomata Oswaldo Aranha (1894-1960), então chefe da delegação brasileira na ONU, presidiu a primeira sessão da Assembleia-Geral. Na ocasião, foi aprovado o plano de partilha da Palestina, que previa a criação de um Estado judeu e outro árabe, com voto favorável do Brasil.
Dois anos depois, o país estabelece relações com Tel Aviv. “Entre esse período e o governo Geisel (1974-1979), há o que a diplomacia chama de equidistância pragmática”, afirma Sochaczewski.
Em 1973, no governo Médici, o chanceler Gibson Barbosa (1918-2007) fez a primeira visita oficial ao Oriente Médio, indo a Israel e ao Egito. A Guerra do Yom Kippur e a dependência do petróleo, porém, levaram o Brasil a estreitar laços com os países árabes.
Newsletter Lá Fora Receba no seu email uma seleção semanal com o que de mais importante aconteceu no mundo *** “Há um rascunho de um posicionamento mais pró-árabe, que vai se consolidar no governo Geisel, que tinha sido presidente da Petrobras e era um homem do petróleo”, diz a professora do IDP.
Sob Geisel, em 1975, o Brasil votou a favor da resolução que definia o sionismo como uma forma de racismo na Assembleia-Geral da ONU. A decisão gerou críticas de Israel, e o embaixador israelense na ONU, Chaim Herzog, rasgou uma cópia da resolução durante o seu discurso, chamando-a de vergonhosa –em 1991, no governo Fernando Collor, o Brasil apoiou a revogação da resolução.
Ainda em 1975, o Brasil reconhece a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) como representante oficial do povo palestino. Na visão de Sochaczewski, isso provocou um distanciamento de Israel, mas sem entrar nas questões do conflito israelo-palestino.
CRONOLOGIA DAS RELAÇÕES DO BRASIL COM ISRAEL E PALESTINA
1947: Com voto favorável do Brasil e sob a presidência do brasileiro Oswaldo Aranha, a Assembleia-Geral das Nações Unidas aprova a divisão da Palestina em dois Estados, levando à criação de Israel.
1949: Brasil estabelece relações bilaterais com Israel
1975: Brasil vota a favor da resolução 3.379 da ONU, que definia o sionismo como uma forma de racismo e discriminação racial. No mesmo ano, o Brasil reconhece a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) como representante oficial do povo palestino
2003: Brasil abre um escritório em Ramalah, sendo o segundo país latino-americano a ter representação no território palestino. Lula designa o diplomata Sérgio Eduardo Moreira Lima como embaixador extraordinário para o Oriente Médio
2009: Brasil participa da Conferência Internacional em Apoio à Economia Palestina para a Reconstrução de Gaza em Sharm el-Sheikh, no Egito
2010: Lula visita Israel, Jordânia, Palestina, Qatar e Irã. No mesmo ano, Brasil reconhece o Estado da Palestina, dentro das fronteiras de 1967
2014: Israel chama o Brasil, então governado por Dilma Rousseff, de “anão diplomático” após o Itamaraty emitir uma nota condenando uma ofensiva em Gaza, que já havia deixado mais de 730 mortos
2019: Jair Bolsonaro visita Israel, recebido no aeroporto por Binyamin Netanyahu. No ano seguinte, fala em transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém até 2021, o que não ocorre.
2021: Brasil se torna membro observador da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA), organização internacional criada para combate ao antissemitismo e memória do massacre dos judeus.
2024: Em fevereiro, Lula compara as ações de Israel em Gaza ao Holocausto. Em resposta, Israel declara o presidente brasileiro como persona non grata. O episódio gera grave crise diplomática. Israel convoca o embaixador brasileiro para dar explicações, e Brasil fez o mesmo.
2025: Em agosto, Israel retira a indicação para ter um novo embaixador em Brasília após um impasse provocado pela decisão do governo Lula (PT) de segurar o aval ao nome do diplomata Gali Dagan para o posto. Atualmente, nem Brasil nem Israel têm seus respectivos embaixadores.
Em julho, Brasil ingressa formalmente em uma ação judicial que acusa Israel de genocídio na Corte Internacional de Justiça e se retira da IHRA.