SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quem ligasse o rádio em 1995 tinha grandes chances de ouvir o rock escrachado dos Mamonas Assassinas, o sertanejo açucarado de Zezé Di Camargo e Luciano e o pagode dilacerante do Só pra Contrariar. Fernanda Abreu, porém, estava olhando para outra direção naquele ano.
A artista decidiu unir o funk que despontava das favelas cariocas com o samba que já havia conquistado prestígio internacional para conceber um disco com a cara do Brasil. Não à toa, batizou o projeto de “Da Lata” material que evoca de uma só vez a inventividade do batuque e a precariedade da nossa condição de país emergente.
“A lata faz alusão justamente a esse jeito ‘se vira nos 30’ do povo brasileiro. É aí que reside a nossa liberdade e a nossa criatividade.” A ideia, porém, não foi bem recebida pelo presidente de sua então gravadora.
“Ele disse que não daria certo, mas esses caras de gravadora nem sempre são os donos da verdade. Eles se equivocam e se equivocam muito.”
A previsão do executivo de fato não se confirmou. Lançado em março de 1995, o disco foi eleito pela Billboard o melhor álbum latino-americano naquele ano e vendeu mais de 100 mil cópias, dando à artista o seu primeiro disco de ouro. Em razão do sucesso, a cantora foi convidada a se apresentar em países como França, Holanda e Alemanha.
Para marcar os 30 anos do trabalho, ela lança nesta quarta-feira (8), no Festival do Rio, um documentário mostrando os bastidores das gravações.
O longa traz ainda depoimentos de pessoas que participaram da criação do projeto, como o produtor Liminha, o fotógrafo Walter Carvalho e a coreógrafa Deborah Colker. Além de reeditar o trabalho em vinil, a artista publicará um livro sobre o disco no dia 21 deste mês.
“Achei que valia a pena fazer um grande projeto por ser um disco que não envelheceu. A linguagem musical dele trouxe o Brasil para dentro da música dançante de forma definitiva.”
Para a cantora, no entanto, lançar o projeto hoje em dia seria um desafio em razão das mudanças que aconteceram na indústria musical. Não raro, artistas se veem obrigados a seguir determinadas regras para aumentar as chances de sucesso nas plataformas de música.
“Com esse disco, eu queria subverter algumas coisas, mas talvez isso seja o mais difícil hoje em dia. Agora, você tem que fazer uma música até tantos minutos, tem que fazer uma produção até tantos segundos e tem que ter um assunto tal”, diz ela. “As plataformas digitais aprisionaram a criatividade e a liberdade da música pop.”
Se a indústria musical mudou de forma profunda nesses 30 anos, o Brasil segue muito parecido com aquele país que inspirou o disco. “Continuamos nessa desigualdade absurda e o artista ainda precisa se virar nos 30.”
Abreu diz que a brasilidade é justamente um dos motivos para o sucesso do trabalho. “Eu, Lenine e Chico Science fizemos parte de uma geração que estava vendo as sonoridades do país de outra forma. Queríamos pôr o Brasil novamente na música.”
Os ritmos nacionais, de fato, permeiam o trabalho, o que pode ser sentido por meio da presença de instrumentos de percussão. Os assuntos das faixas também são tipicamente brasileiros. “Veneno da Lata”, por exemplo, faz alusão a um caso folclórico ocorrido em 1987, quando cerca de 14 mil latas contendo maconha aportaram no litoral brasileiro.
Outra faixa marcante do trabalho é “Garota Sangue Bom”. A música se tornou tão marcante na carreira de Abreu que acabou se confundindo com a imagem pública da cantora.
Não raro, ela é apresentada em programas de rádio e televisão como a garota carioca suingue sangue-bom. “Eu posso estar com 90 anos, mas as pessoas continuarão me apresentando assim. Virou uma espécie de marca registrada.”
A letra de “Garota Sangue Bom”, aliás, vai além dos estereótipos associados às mulheres cariocas. Na canção, elas não são apenas um corpo sensual, mas também seres pensantes. “Sempre existiu essa ideia da mulher carioca gostosa, mas nunca falavam da inteligência. É como se as mulheres bonitas não pudessem ser inteligentes.”
A verve feminista da cantora pode ser vista, inclusive, em uma das fotos de divulgação do disco. Na imagem, Abreu transforma duas panelas num sutiã improvisado, como se debochasse da ideia de que o lugar da mulher é na cozinha. De instrumento de opressão, a panela vira um símbolo de rebeldia.
A artista diz ter precisado se impor para ser respeitada numa indústria dominada por figuras masculinas. “Tive de ter jogo de cintura para trabalhar com muitos homens. O caminho é não se deixar oprimir e manter o que você quer”, diz ela.
“A minha sorte é que o disco era meu. Então, quando falavam que o trabalho devia ser isso ou aquilo, eu dizia: Querido, faz isso no seu disco. Esse aqui é o meu.’ A gente cede quando as pessoas têm razão. Quando não têm, não há motivo para isso.”
Essa preocupação com a própria integridade artística se fez notar logo no início da carreira. Em 1982, a cantora despontou como backing vocal da Blitz, grupo que conquistou enorme sucesso com músicas como “Você Não Soube Me Amar” e “A Dois Passos do Paraíso”.
Logo após a separação da banda, em 1986, Abreu diz que gravadoras queriam contratá-la para lançar sua carreira solo. No entanto, recusou todos os convites. “O que eu tinha para oferecer? Naquele momento, nada. Por isso, percebi que precisava entender qual som eu queria fazer.”
O resultado dessa busca chegou às lojas em 1990, quando a artista lançou “SLA Radical Dance Disco Club”. Fundamental para o fortalecimento do pop dançante no país, o disco ajudou a renovar um cenário musical fortemente ancorado no rock.
Nesse trabalho, decidiu incluir elementos do funk carioca num momento em que a perseguição a esse gênero era grande. “Em 1989, quando fui num baile funk, falei: ‘Fodeu. Acabou pra mim.’ Não conseguia nem dormir. No dia seguinte, levei o DJ Malboro para gravar comigo.” O fruto dessa parceria é “Disco Club 2 (Melô do Radical)”, uma das faixas do disco de estreia.
Em 1992, a cantora lançou seu segundo álbum de estúdio, intitulado “SLA 2 Be Sample”. Faz parte desse trabalho a icônica “Rio 40 Graus”, música que se tornou o maior sucesso de Abreu e uma das sínteses mais bem-acabadas sobre o Rio de Janeiro, descrito na música como o purgatório da beleza e do caos. “Se a gente fizesse hoje, eu só incluiria a milícia, que não tinha na época. O resto está tudo lá.”
Com sucessos como esse, Abreu se tornou uma das figuras centrais para a consolidação do pop, gênero ainda hoje visto como descartável. “Estou aqui para provar que isso não é verdade. A minha carreira de 35 anos mostra que é possível. Basta fazer música com verdade e consistência.”
FERNANDA ABREU – DA LATA 30 ANOS
– Quando Festival do Rio: Qua. (8), às 21h30, no Estação NET Gávea; qui. (9), às 18h15, no Cine Santa Teresa; sáb. (11), às 21h15, no Cinesystem Belas Artes.
– Produção Brasil, 2025
– Direção Paulo Severo
LIVRO DA LATA 30 ANOS
– Quando 21 de outubro
– Preço R$ 180
– Editora Cobogó