SÃO PAULO, SP (UOL/FOLHAPRESS) – A Prefeitura de São Paulo publicou nesta terça-feira (7) a lei que permite o leilão de algumas áreas e ruas públicas da capital.

A lei transforma vias públicas em propriedades vendáveis. Ela retirou ao menos seis endereços de uso comum e os classificou como bem dominial, o que permite sua venda à iniciativa privada como propriedade do município.

Um dos locais desincorporados é a travessa Engenheiro Antônio de Souza Barros Júnior, no bairro dos Jardins, que deve ser vendida para um condomínio de luxo. O local tem 647 m² e teve valor de venda fixado em R$ 16 milhões.

A lei, que a princípio tinha como foco somente a travessa nos Jardins, também permitiu a venda de outros terrenos e vias: um terreno na avenida Brigadeiro Faria Lima, de outro terreno próximo à Rodovia Anhanguera e de parte da Avenida Cônego José Salomon, em Pirituba. No caso de Pirituba e da Anhanguera, os locais serão concedidos para projetos esportivos. O destino do endereço na Faria Lima não foi esclarecido pela lei promulgada nesta terça-feira (07).

O maior dos terrenos públicos desincorporados é uma área de 25.643,29 m² na Rua Keia Nakamura, em Guaianazes, onde um condomínio popular deve ser construído. A previsão é de que 720 apartamentos sejam erguidos no “âmbito da política habitacional do município”.

Nunes fez três vetos ao projeto apresentado, em sua maioria, tirando nomes de ruas que foram incluídas em emendas e sem propostas por parte de parlamentares. Entre as ruas que não tiveram desincorporação autorizada estão a rua América Central, em Santo Amaro, e a rua Canoal, no Morumbi.

A reportagem procurou a prefeitura por email para mais detalhes sobre a lei. Em caso de manifestação, o texto será atualizado

VEJA AS RUAS QUE SE TORNAM PROPRIEDADES VENDÁVEIS:

– Travessa Engenheiro Antônio de Souza Barros Júnior, via sem saída entre a Rua Pamplona e a Alameda Lorena, nos Jardins. Justificativa: atende apenas imóveis vizinhos, a transferência direta é juridicamente permitida (Ementa nº 12.141 – PGM-AJC) e que a desafetação atende ao interesse público, nos termos da Lei Orgânica do Município. Autoria: Prefeitura Municipal de São Paulo;

– Área localizada na Av. Cônego José Salomon, 755, Jardim Felicidade. Justificativa: Destinada ao Instituto Gomes de Basquete, para fins de prática de atividades físicas e esportivas à população. Autoria: Fabio Riva (MDB);

– Terreno de 140 m² localizado na Av. Brigadeiro Faria Lima, no Setor 086, quadra 129, entre os lotes 0157 e lotes 0024. Justificativa: Não informada. Autoria: Zoe Martínez (PL);

– Terreno na Rua Keia Nakamura sem número, parte do lote nº 287, na Colônia Vila Carmosina, em Guaianazes. Justificativa: Construção de 720 apartamentos para habitação popular. Autoria: João Ananias (PT);

– Rua Aurora Dias de Carvalho. Justificativa: Não informada. Autoria: Sansão Pereira (Republicanos);

– Área na Rua Luis Pereira Rebouças S/N, setor 203, quadra F057 (área aproximada de 5.200m²). Justificativa: Concessão do espaço à associação esportiva, cultural e educacional. Autoria: Silvão Leite (União Brasil);

COMO VENDA DE VIAS URBANAS PODE IMPACTAR POPULAÇÃO?

Venda de ruas desperta dúvidas sobre legalidade. Embora pareça estranho imaginar a compra de uma via urbana, especialistas explicam que a lei permite essa operação em casos específicos, desde que sejam cumpridos requisitos legais e respeitada a função social do espaço.

Venda ou concessão de áreas pode violar Constituição e função social. A alienação de uma rua pública pode contrariar a função social da propriedade e o uso comum do povo, caso ocorra sem estudos técnicos e participação efetiva da população. Em termos jurídicos, está implícito o art. 5º, XXIII da Constituição Federal, que determina que “a propriedade atenderá a sua função social”. “A Administração pública deve justificar o motivo da desafetação e demonstrar que não há mais interesse público no uso como via”, explicou ao UOL Rodrigo Costamilan, advogado especializado em direito imobiliário.

Ruas não servem apenas para carros, avalia urbanista. Para Viviane Sá, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Unisantos, as ruas são espaços de circulação de pedestres, pessoas com deficiência, idosos e crianças, além de desempenharem funções de lazer e encontro. “Privatizá-las significa a restrição de acesso público, impedindo que os cidadãos ocupem os espaços de maneira democrática”, disse em entrevista ao UOL em julho.

“Venda pura e simples é juridicamente difícil”, avaliou especialista em gestão pública. “Posso começar dizendo que a praça, assim como a rua, é do povo, como o céu é do condor”, afirma Valter Caldana, coordenador do Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da FAU-USP. Ele lembra que o Código Civil (art. 99) dificulta a alienação de bens de uso comum.

Nem toda rua pode ser vendida. Casos como o da venda da travessa nos Jardins se restringem a vias que foram desviadas, substituídas ou incorporadas em projetos de reurbanização. Vender uma rua ativa exigiria alteração do plano diretor, algo complexo e de difícil aprovação, segundo Costamilan. “O plano diretor ou a lei orgânica de muitos municípios exigem estudos técnicos e audiências públicas para aprovação”, acrescenta o advogado.

Venda nos Jardins reforçaria exclusão em bairro já segregado. “A presença de comércio de luxo e imóveis de alto padrão em uma área central e privilegiada acaba por expulsar, ainda que simbolicamente, determinadas pessoas do bairro. Criar um condomínio fechado nesta área escancara a especulação imobiliária, que muitas vezes não favorece a população”, afirmou Sá.

ANULAÇÃO DA PROPOSTA

Venda de áreas pode ser anulada por ilegalidade no processo. Moradores, o Ministério Público ou entidades podem questionar a aprovação da proposta na Justiça por desvio de finalidade, falta de interesse público ou falhas legislativas, como ausência de estudos técnicos ou audiências públicas. Costamilan cita precedente do TJ-SP que anulou lei semelhante na Mooca por falta de participação popular, mesmo quando previa moradias populares.

Falta participação popular no processo, reforça professora. O Estatuto da Cidade exige debates, audiências e consultas públicas para mudanças urbanísticas, ressaltou Sá. “O princípio fundamental do Estatuto da Cidade é a participação popular na elaboração de legislações urbanísticas”, diz.

Venda de ruas pode aprofundar desigualdades urbanas. Ainda na avaliação de Sá, medidas como as aprovadas em votação legislativa nesta segunda-feira (06) tornam as cidades mais desiguais. “Perderemos o princípio fundamental de viver em cidades, que é ocupar este território de forma democrática, exercendo o direito de circular e vivenciar os espaços”.