RIO DE JANEIRO, RJ (UOL/FOLHAPRESS) – Uma segunda-feira normal para o árbitro capixaba Davi Lacerda, que apitou no sábado a vitória do Fluminense sobre o Atlético-MG, significa acordar cedo. Não para treinar ou fazer recuperação. Mas para dar expediente.

A taxa que recebeu pelo jogo foi de R$ 5.250, segundo a tabela de 2025. Se entrasse na escala toda quarta e domingo, poderia faturar como se fosse executivo de grande empresa. Mas nada disso é garantido.

Só a carteira de trabalho é a fonte certa de recursos. E quem a assina é uma serralheria em Serra, no Espírito Santo, na qual o árbitro de 29 anos é gerente. Ele responde por uma das sete unidades da empresa.

Como a profissionalização da categoria ainda é um projeto para o fim de 2026, pressão e a incerteza compõem a realidade dos árbitros do futebol brasileiro.

Ramon Abatti Abel e Lucas Casagrande estão aí para reforçar a ideia. Criticados no último fim de semana, eles foram afastados e vão passar tempo fora da escala do Brasileiro por causa dos erros que cometeram em São Paulo x Palmeiras e Red Bull Bragantino x Grêmio.

Sem escala, sem dinheiro na conta. Pelo menos referente a taxas.

É por isso que árbitro vira e mexe busca um extra, como Felipe Fernandes. Foi apitar jogo amador no domingo, em Minas Gerais, 12h após atuar na Série A. Passou mal.

“EU NÃO CONTO COM O DINHEIRO DA ARBITRAGEM”

Davi Lacerda faz parte do quadro da Série A. Ainda não chegou ao topo da pirâmide, formada pelos que têm escudo Fifa (e que ganham mais por jogo). Por isso, ainda mantém o emprego formal. O tempo necessário para se manter em forma depende de um combinado com o patrão.

“Tenho um acordo comercial com os donos da minha empresa e acaba que eu tenho uma flexibilidade um pouco maior de tempo em relação aos jogos, em relação aos treinamentos, mas não deixando minhas funções. Então, eu tenho um notebook em que eu consigo trabalhar, emitir meus relatórios e entregar resultado para o dono. Quando estou no meu estado, o expediente é como um trabalhador normal. À noite, faço os meus treinos em prol da arbitragem”, explicou Davi ao UOL.

Como melhorar? A CBF acompanha seus árbitros semanalmente, passa orientações e dá o retorno a respeito das respectivas atuações. Mas o trabalho físico —e um dinheiro a mais— é problema de cada um.

Davi banca o próprio time, com fisioterapeuta, nutrólogo e preparador físico. O plano de carreira é um dia viver da arbitragem. Ele tem um pé de meia para o qual manda todas as taxas que recebe. É o investimento enquanto a serralheria sustenta a casa.

“Eu não conto com o dinheiro da arbitragem”, disse ele.

CAMPO PRECÁRIO

Árbitro da vitória do Bahia sobre o Flamengo, Rodrigo Pereira de Lima já chegou ao quadro da Fifa. Durante a trajetória, chegou a conciliar o trabalho na Guarda Municipal do Recife.

“Eu tinha que pedir ao chefe para fazer troca de permuta de serviço, pagar depois com horas extras. Isso aí afetava diretamente o desempenho físico que nós precisamos manter esse alto nível”, contou ele.

A situação só ficou mais tranquila com a Lei Geral do Esporte. Há um dispositivo no texto que considera que um servidor público (civil ou militar) pode atender a uma convocação de entidade esportiva, sem precisar compensar as horas de trabalho.

“Realmente, facilitou meu trabalho. Eu sempre saía devendo (horas). E eu trabalhava à noite. Sempre é difícil achar alguém para trocar. E ainda não dormia direito”, completou o árbitro.

A estrutura para preparação por vezes pode ser precária e passa longe da qualidade proporcional à elite do futebol.

Para correr, usa alguns campos públicos, da prefeitura, ou alguns sintéticos de qualidade duvidosa. Para se manter afiado com a tomada de decisão, Rodrigo recorre à academia e também a peladas de amigos no Recife.

“Eu peço ao pessoal para apitar porque ajuda o cognitivo estar realmente treinando com jogadores”, explicou ele, apontando que o mundo ideal está nos períodos de preparação promovidos pela CBF no Rio.

ÁRBITRO FAZ PERMUTA IGUAL INFLUENCER

Wilton Pereira Sampaio já chegou ao topo da arbitragem. Tem a Copa do Mundo de 2022 no currículo e está na concorrência para repetir a dose em 2026.

A rotina é como se fosse um profissional. Mas com algumas nuances.

Ele deixou de lado a profissão de professor. Ele trabalhava em uma escola militar e há cerca de nove anos já consegue se dedicar integralmente à arbitragem. A taxa para árbitros Fifa em 2025 no Brasileirão, inclusive, é R$ 7.280 por jogo.

Diferentemente de Davi Lacerda, as segundas-feiras de Wilton são para recuperação física e mental. Em geral, ele consegue ter duas horas de treino por dia. O leque envolve a parte de fortalecimento muscular, aeróbico e a teoria do jogo.

“Eu tenho um preparador físico exclusivo, eu tenho um personal trainer que me acompanha na academia, eu tenho um professor de idiomas que me acompanha também. E tem o instrutor técnico, que me leva para o campo de jogo, a gente treina simulações no campo de jogo e também análise de vídeo de como foi o meu jogo anterior visando o próximo jogo”, relatou o árbitro.

O custo para isso, no caso de Wilton, em parte vem da Federação Goiana. Mas o serviço completo também vem por meio de parcerias. E aí, o árbitro vira uma espécie de influencer, quando recebe as permutas de algumas empresas.

“Para a recuperação clínica, por exemplo, eu tenho uma clínica de terapia. Eu sou parceiro deles e eles usam também a minha imagem para poder divulgar o trabalho deles. A mesma coisa com o meu preparador físico. Então, a gente troca parcerias. Ele me cede o serviço, eu cedo também a imagem, contribuo também com o trabalho dele”, explicou Wilton, que toma cuidado com a divulgação de quem não deve e também não tem perfil em redes sociais.

E QUANDO A PRESSÃO CHEGA

O fator psicológico é preponderante para a sobrevivência de um árbitro. Se nesta terça-feira (07) Ramon Abatti Abel e Lucas Casagrande estão na berlinda, em outro momento cada um deles tem um momento de crise para chamar de seu.

Edina Alves Batista ainda carrega a responsabilidade de representar as mulheres em um ambiente majoritariamente masculino.

Assim como Wilton, tem Copa do Mundo feminina no currículo e consegue se dedicar à atividade, ainda que não formalmente como profissional. A Federação Paulista ajuda bastante nisso.

Para ela, a rotina de treinos ajuda na blindagem contra os erros. Mas ninguém está imune.

“Em um lance, as pessoas nos crucificam. Mas quantos passes o jogador erra? Ele erra por que quer? Jamais. Igual o árbitro. O árbitro é o mais cobrado. A gente é ser humano comum. A pressão é normal. Quem vive no futebol vive na pressão também. Mas essa tolerância tem que melhorar um pouco com a arbitragem”, disse Edina, retornando ao ponto “sensível” do dinheiro:

Nós amamos o que fazemos. E quando entramos lá dentro daquele campo de jogo, nós damos o nosso melhor. Porque nós ganhamos quando estamos lá dentro. Quando estamos fora, não ganhamos nada. A gente não vai para o banco e está ganhando salário. Não! A gente fica em casa sem jogo.

Para Ramon Abatti Abel, Lucas Casagrande e os árbitros de vídeo dos respectivos jogos, essa será a dinâmica dos próximos dias. Nada de jogos ou escalas. O momento é de treinos, reavaliações e reflexão para não errar de novo. Pelo menos por algum tempo.

E a profissionalização? A CBF trabalha para que esta e a próxima temporada sejam uma forma de seleção. Os árbitros que se destacarem entrarão na primeira turma de profissionais, em dezembro de 2026.