RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – As migalhas de um bolinho caíam da boca de Juliette Binoche enquanto ela falava com apetite do seu filme de estreia como cineasta. A atriz francesa lança, no Festival do Rio, o documentário “In-I In Motion”, registro da ocasião em que ela se juntou ao coreógrafo Akram Khan para tentar aprender uma dança complexa. Isso foi há 17 anos, quando Binoche desfrutava do seu auge e sentia fome de renovação.

No filme, ela devora a si mesma. Está praticamente nua. Não sem roupas, mas despida de qualquer vergonha, diz. Seu desejo mais voraz, à época, era a intimidade. “Ser artista é se expor. Precisa ser ousado, superar o ego, se sentir ridículo”, afirma, enquanto balança os braços por cima da cabeça, lembrando da dança que treinou à exaustão.

O filme mostra os meses de ensaio que culminaram numa turnê de 120 apresentações que tentaram traduzir poesia e filosofia por meio do corpo.

Numa cena, ela e Khan têm de imaginar seus corpos como esponjas que absorvem a energia um do outro. Noutro momento, eles brigam, cospem xingamentos. Binoche se joga no chão, tenta beijar os pés do parceiro. Khan, a certa altura, chama ela de “branquela de merda”. Um acaricia a bochecha do outro, e depois fingem que vão se enforcar.

São imagens, no mínimo, desconfortáveis -mas não para Binoche. “O confronto permite que se esteja ciente de suas falhas, de quão frágil se é. Se não, como vai mudá-las? Como evoluir se tudo está bom o tempo todo?”

Em Nova York, quando estava em turnê, Binoche ouviu do ator Robert Redford, morto no mês passado, que deveria costurar um documentário a partir das gravações. Demorou, mas está aí -o filme estreou no Festival de San Sebastián, na Espanha, mas ainda não tem data para chegar ao circuito.

“Eu ainda não almocei”, diz Binoche, pausando a entrevista para impedir uma pessoa de levar o resto do doce que comia. Era uma madeleine, quitute francês preparado ali por mãos brasileiras, parte do cardápio do hotel de luxo onde está hospedada, à beira da praia de Copacabana.

Ela já vinha paquerando o Brasil há alguns meses. Em maio, a francesa foi presidente do júri do Festival de Cannes, um dos maiores eventos do cinema mundial, onde entregou dois prêmios a “O Agente Secreto” -de melhor direção para o pernambucano Kleber Mendonça Filho e melhor ator para Wagner Moura. A obra vai tentar uma vaga entre os indicados ao Oscar do ano que vem.

Binoche diz que queria dar um prêmio importante para “O Agente Secreto” -sem especificar se pensava na Palma de Ouro, o maior do evento, ou no Prêmio do Júri-, mas foi voto vencido pelos colegas. “Eu aceitei, mas disse que, então, teríamos de entregar esses dois troféus.”

Mendonça Filho é um diretor de imaginação muito livre, ela afirma, e Wagner Moura encanta por ser introspectivo. A performance dele levou seu nome às listas de apostas para o Oscar de veículos especializados. “Há muitas camadas nessa campanha, e lá é tudo muito político. Mas desejo o melhor a Wagner e a Kleber também”, diz Binoche.

Ela própria já venceu o Oscar de atriz coadjuvante por “O Paciente Inglês”, em 1996. Binoche havia ficado conhecida anos antes, com “A Insustentável Leveza do Ser”, de 1988, “A Liberdade é Azul”, de 1993, e numa das versões de “O Morro dos Ventos Uivantes”.

É hoje uma das atrizes mais premiadas e prolíficas da França, com filmes de Abbas Kiarostami e Jean-Luc Godard no currículo. Colaboradora frequente de nomes como Claire Denis e Michael Haneke, é também uma das poucas no mundo a ter vencido troféus nos festivais de Berlim, Veneza e Cannes -daí ter sido escolhida por este último para comandar o time de jurados, ao lado de nomes como o diretor sul-coreano Hong Sang-soo e a atriz americana Halle Berry.

“Havia pessoas da Índia, do México, de Marrocos. As conversas partiam de diferentes mentalidades e formações, o que nos fazia questionar sobre por que existem tantos pontos de vista. Ensina a gente a se abrir para o confronto.”

Como no Oscar, há muita política nos bastidores desses festivais. Em Cannes, Binoche deu a Palma de Ouro a “Foi Apenas um Acidente”, do iraniano Jafar Panahi, que vem ao Brasil ainda neste mês para lançar a obra na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Gravado de forma clandestina, o longa acompanha ex-prisioneiros políticos que reencontram um homem que pode ter sido seu torturador -e se veem divididos entre vingança e perdão.

A premiação foi lida como um manifesto de Cannes contra a perseguição de artistas no Irã -Panahi já passou pela prisão duas vezes por se opor ao governo. “É impressionante que um homem que quase morreu na prisão seja capaz de, dois anos depois, falar em reconciliação”, diz Binoche. “Jafar é exemplo de que devemos almejar perdão, evolução. Ele tem uma visão de ouro sobre a humanidade.”

Assim, Binoche foi na contramão do que aconteceria no Festival de Veneza meses depois. Em julho, o evento italiano foi acusado de covardia por dar seu grande prêmio, o Leão de Ouro, ao filme americano “Father Mother Sister Brother”, de Jim Jarmusch, em vez de laurear “A Voz de Hind Rajab”, que denuncia as mortes causadas por Israel em Gaza.

Binoche diz que prioriza histórias com mensagens fortes porque elas podem mudar o curso do mundo. “Na política, há muitas mentiras. Na arte, tentamos ser verdadeiros”, afirma.

Ela própria esteve no centro de uma questão política em Cannes. Na abertura, Binoche fez um discurso de homenagem à fotojornalista palestina Fatma Hassouna, que tinha um filme na programação, mas foi morta durante um ataque de Israel.

“Fatma deveria estar aqui conosco hoje. A arte permanece”, disse Binoche, vestida com um capuz da Dior que lembra um véu, comum nos trajes femininos do Oriente Médio. Houve dúvidas, à época, se aquele era um gesto de manifesto da atriz, especialmente porque Binoche levou alguns dias para assinar uma carta aberta contra os assassinatos em Gaza.

Binoche nega a mensagem política da vestimenta. “Era mais sobre ancestralidade. Pensei em Nossa Senhora de Fátima ou na Virgem Maria. Até em deusas indianas.”

Ela é um tanto evasiva também ao falar de Donald Trump. O presidente dos Estados Unidos anunciou, na semana passada, numa rede social, uma tarifa de 100% a toda obra cinematográfica internacional que queira ser exibida no mercado americano. Binoche dá um gole no chocolate quente antes de dar sua opinião. “Não sei como isso vai afetar a gente na França. Ele está tentando mexer com o mundo todo. Mas não sei bem o que dizer.”

A França, pelo menos, tem uma das cadeias cinematográficas mais funcionais do mundo. Lá, as pessoas têm proximidade com o cinema desde cedo, na escola, e o país tem várias políticas de incentivo. Além disso, as salas para filmes estrangeiros são limitadas.

“É o que todos os países deveriam fazer”, ela afirma. “Jovens cineastas talentosos recebem apoio de uma organização, e aí conseguem custear parte das despesas. Isso nutre a esperança da sociedade. Alimenta a nossa ousadia. É o que precisamos.”

IN-I IN MOTION

Quando Festival do Rio: Qui. (9), às 18:30, no Cinesystem Belas Artes; sáb. (11), às 14h, no Estação NET Gávea

Classificação Não informada

Produção França, 2025

Direção Juliette Binoche