SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) – “Isto aqui não é um filme, é teatro.” Esta é uma das primeiras frases ditas por Wagner Moura em “Um Julgamento”. Tem peso por marcar seu retorno aos palcos depois de 16 anos dedicados às telas e, também, por evocar um senso de autenticidade para uma trama que discute, essencialmente, o que é fato e o que é ficção.
Também ganha outra camada por ser um enlace de sua carreira, dividida entre palcos e telas, com a de Christiane Jatahy, dramaturga e diretora carioca premiada pela obra que mistura linguagens desde os anos 2000, em peças como “Hamlet – Nas Dobras do Tempo”, encenada em Paris no ano passado, e a ópera “Nabucco”, da última temporada lírica do Theatro Municipal de São Paulo.
Nelas, assim como em “Um Julgamento”, Jatahy borra as fronteiras entre teatro e cinema, pondo câmeras nas mãos de seus atores e deslizando, acima de suas cabeças, telas que, mais do que a forma, alteram o conteúdo da trama.
“Eu trabalho há muito tempo com a fricção entre as duas coisas, mas o cinema nunca entra apenas como aspecto fílmico”, diz a diretora, após a estreia do espetáculo em Salvador, na última quinta-feira (2). “Para mim, o uso da câmera e da projeção tem que estar integrado à ficção, precisa ter um porquê. Hoje há certo excesso disso -por um lado, porque ajuda a aproximar o olhar do público e, por outro, porque vivemos num mundo imagético que contagia tudo.”
“Um Julgamento” questiona, narrativamente, o papel da verdade, da mesma forma que questiona, no formato, o que é real e o que não é. Uma espécie de continuação de “Um Inimigo do Povo”, escrita pelo norueguês Henrik Ibsen em 1882, a peça é um drama de tribunal centrado no embate entre o protagonista Thomas Stockmann e seu irmão, Peter -vivido por Danilo Grangheia.
No texto de Ibsen, o primeiro é condenado pela cidadezinha onde vive depois de descobrir que o balneário que serve de fonte de renda para boa parte da população está contaminado e que suas águas não são seguras para banho. O segundo, prefeito do lugar, rompe com o irmão por achar que a verdade não vale o estrago econômico que o fechamento causará na comunidade.
Um embate parecido com aquele que opôs brasileiros durante a pandemia de Covid-19, citada nominalmente no espetáculo -a trama de “Um Julgamento” foi trazida para o Brasil contemporâneo, algo que Moura avisa já no apagar das luzes.
Nela, os irmãos se enfrentam anos mais tarde, numa tentativa de Thomas de limpar o seu nome. Para isso, chamam, a cada noite, 11 espectadores para formar um júri que pode interagir com a peça, propondo perguntas. Na iminência do fim, eles votam anonimamente para decidir se o protagonista é ou não um inimigo do povo.
Um final aberto, portanto, que será influenciado por argumentos de defesa e acusação muitas vezes exibidos nas telas, em registros fílmicos que mudam a opinião do público sobre um irmão ou outro. Em participação especial, Marjorie Estiano aparece chorando num vídeo apresentado como prova, pedindo ao personagem de Moura que esqueça aquele embate político depois de a família sofrer diversas retaliações.
Há o papel da cientista de Tatiana Henrique que, conectada ao vivo por videochamada, serve de testemunha para falar do nível de contaminação do balneário. Julia Bernat, por sua vez, volta a trabalhar com Jatahy, como a filha e advogada de Thomas, presente em carne e osso.
Outra participação, ainda mais especial, é a de Salvador e José Moura, filhos de Wagner Moura e, em cena, de Thomas Stockmann. Eles aparecem em registros de vídeo pré-gravados.
“Este julgamento não acontece num lugar ficcional que criamos. Ele acontece neste teatro, com as pessoas que estão aqui a cada sessão”, diz Jatahy sobre a união de atores, não atores e público no palco. A ideia, ainda, é rotacionar os papéis secundários, emprestando-o a artistas locais sempre que a produção mudar de cidade.
“É um espetáculo que abre a possibilidade de diálogo, num momento em que a gente não consegue ouvir o outro lado. Abrir a possibilidade de escutar é importante.”
A ideia surgiu a partir do encontro entre Jatahy e Moura, depois que o ator foi ver uma de suas peças em Los Angeles, há três anos. Foi amor à primeira vista, e ele decidiu que seu retorno aos palcos seria com ela. O fascínio do ator pelo texto de Ibsen se encontrou com a vontade da diretora de se debruçar sobre o tema da radicalização e a ideia de duplos.
“Eu e a Chris tínhamos os mesmos interesses, mas com focos diferentes. Ela queria falar de como o fascismo se apropria da democracia para destruí-la. Eu, sobre a verdade, sobre a minha perplexidade com o que eu considero o ocaso da verdade -o declínio do jornalismo, as tecnologias loucas que aparecem, a polarização”, diz Moura.
Eles assinam, junto a Lucas Paraizo, o texto de “Um Julgamento”, que fica em cartaz no Trapiche Barnabé, antigo armazém de Salvador, até o dia 12 deste mês. Entre 23 de outubro e 3 de novembro, terá apresentações no teatro do CCBB no Rio de Janeiro. Estão previstas, para o meio do ano que vem, temporadas em França, Holanda, Espanha, Escócia e, ela espera, em São Paulo.
Mais hercúleo do que o trabalho de montar a peça foi o de casar a agenda de Jatahy com a de Moura, que se divide entre Brasil e Estados Unidos com sua miríade de projetos cinematográficos e serializados e que, neste fim de ano, deve voltar seus esforços para a campanha de “O Agente Secreto” para o Oscar.
“Mas tenho a consciência de que sou um ator de teatro, e um ator que se forma no teatro precisa eventualmente voltar a ele”, diz Moura.
UM JULGAMENTO – DEPOIS DO INIMIGO DO POVO
Quando Temporada em Salvador: seg. e qua. a sex., às 20h; sáb., às 21h; dom., às 19h. Até 12/10. Temporada no Rio: seg. e qua. a sáb., às 19h; dom., às 18h. Até 3/11
Onde Salvador: Trapiche Barnabé – av. Jequitaia, 5. Rio de Janeiro: Teatro II CCBB – r. Primeiro de Março, 66
Preço R$ 30, em bileto.sympla.com.br
Classificação 14 anos
Elenco Wagner Moura, Danilo Grangheia e Julia Bernat
Direção Christiane Jatahy