BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O Ministério da Defesa teme perder contratos com empresas americanas e competitividade no mercado internacional em caso de retaliação contra os Estados Unidos por causa do tarifaço aplicado por Donald Trump. Na avaliação da pasta, aplicar a Lei da Reciprocidade traria impactos negativos ao setor.

O cenário de retaliação perdeu força nas últimas semanas depois do aceno feito por Trump ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na Assembleia-Geral da ONU, mas o processo de aplicação das medidas de reciprocidade segue em debate por membros do governo brasileiro.

A avaliação da Defesa consta em ofício encaminhado ao secretário-executivo da Camex (Câmara de Comércio Exterior), Rodrigo Zerbone. O órgão é responsável pela elaboração de um relatório de impacto econômico e setorial da guerra comercial aberta pelos EUA. O documento será produzido a partir dos subsídios fornecidos pelos membros do Gecex (Comitê-Executivo de Gestão).

No documento, ao qual a reportagem teve acesso, a pasta afirma que uma reação do Brasil “não será, necessariamente, benéfica para o setor de defesa” e lembra que componentes de diversos produtos brasileiros têm origem norte-americana e que muitos projetos são desenvolvidos com itens importados dos EUA.

“A aplicação da Lei de Reciprocidade Econômica traria maiores custos para o desenvolvimento de produtos e projetos para o mercado brasileiro, seja para consumo interno pelas Forças Armadas, inclusive, seja para produção para exportações para outros tantos países”, diz trecho do documento.

De acordo com o ministério, a base industrial de defesa —conjunto das empresas estatais ou privadas que participam do desenvolvimento de produtos estratégicos do setor— exportou no último ano cerca de US$ 940 milhões para os Estados Unidos.

Ainda segundo a Defesa, as exportações sofreram impactos negativos desde que a sobretaxa de 50% a produtos brasileiros foi imposta pelos EUA. Como exemplo, menciona que empresas de segmentos estratégicos, como armas e munições, observaram redução nas vendas para o mercado americano.

A pasta afirma também que o efeito mais imediato sentido pelas companhias exportadoras foi o impacto na competitividade dos produtos brasileiros no mercado americano. Na avaliação da pasta, o Brasil acabaria forçado a acelerar acordos bilaterais setoriais com os EUA, como o Acordo de Aquisição de Defesa Recíproca, para mitigar essa perda de atratividade.

Dados da divisão de Importação e Exportação do Departamento de Promoção Comercial apontam que Embraer, CBC, Nitro Química, e RJC —responsáveis pela exportação de itens como nitrocelulose, detonadores, munição e peças de aeronaves— foram as principais empresas exportadoras do ramo de defesa que venderam produtos aos EUA entre 2023 e 2025.

No curto e médio prazos, em caso de retaliação, a pasta prevê perda de contratos com empresas dos EUA, em especial no setor de aeronaves, e recuo de investimentos. “Outro efeito que certamente será gerado com a aplicação da Lei de Reciprocidade Econômica será a necessidade de reconfigurar cadeias de suprimento, validando alternativas europeias e asiáticas”, diz.

A Defesa ainda considera possíveis restrições a tecnologias sensíveis em caso de uma reação americana, se o Brasil recorrer à Lei de Reciprocidade, e pondera que empresas brasileiras podem ser impedidas de acessar sistemas americanos com controle de exportação sob regulamentações do governo dos EUA.

Como exemplo, cita o Regulamento Internacional de Tráfego de Armas, o Regulamento de Administração de Exportação e o Regulamento Federal de Aquisição da Defesa, que podem ser utilizados como instrumentos para barrar o acesso a tecnologias sensíveis e necessárias à base industrial de defesa brasileira.

A análise técnica que embasa o posicionamento da Defesa ressalta que a indústria do setor opera com um “alto nível de confidencialidade” e que suas cadeias de suprimento são “extremamente complexas”, sendo os EUA líderes em diversas tecnologias, especialmente em áreas como sistemas de armas de precisão, sensores e motores.

“Essa liderança tecnológica, somada a parcerias estratégicas entre empresas brasileiras e americanas, frequentemente leva à integração de componentes dos EUA em produtos de defesa brasileiros”, destaca.

No caso da Marinha, por exemplo, as fragatas classe Tamandaré, que são desenvolvidas pela Emgepron (Empresa Gerencial de Projetos Navais), utilizam peças americanas em sua construção.

No fim de agosto, a secretaria-executiva da Camex recebeu o pleito do Itamaraty para iniciar o “processo de aplicação de medidas de reciprocidade contra os Estados Unidos, em razão das tarifas unilaterais impostas por aquele país às exportações brasileiras.”

Como mostrou a Folha de S.Paulo, a deliberação sobre a admissibilidade da Lei de Reciprocidade estava prevista para ocorrer no último dia 23, durante reunião ordinária do Gecex, mas acabou adiada. O item não foi excluído da pauta, mas nenhuma decisão foi tomada.

“O Gecex tomou conhecimento da elaboração do relatório […], inclusive das contribuições recebidas até o momento de diferentes órgãos do governo federal, e foi informado sobre os prazos aplicáveis para as próximas etapas do processo”, diz trecho de documento que resume as deliberações feitas pelo colegiado.

Em nota, o Mdic (Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços) afirmou que não houve mudança nos prazos para o trâmite da proposta e que a secretaria-executiva da Camex tem 30 dias, prorrogáveis por mais 30, para apresentar o relatório ao Gecex.

Um técnico ouvido pela reportagem sob condição de anonimato avalia que, no processo de reação ao tarifaço, é normal que a retaliação ganhe maior ou menor tração de acordo com sinais enviados por Washington.

O debate interno no governo em relação à Lei da Reciprocidade ocorre em paralelo às tratativas entre Washington e Brasília sobre uma possível reunião entre os presidentes Trump e Lula.

Durante seu discurso na ONU, o republicano revelou que havia falado com o brasileiro nos bastidores da Assembleia-Geral e que houve excelente química entre eles. Trump e Lula conversaram pela primeira vez, por videoconferência, nesta segunda-feira (6), cerca de duas semanas depois do aceno.