SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Seis anos após sua sanção, a Lei da Liberdade Econômica tem tido pouca influência sobre o Judiciário. Nas raras ações que tratam do principal objetivo da legislação, que era limitar a interferência do Estado nos negócios privados, as decisões têm sido contrárias às empresas, segundo levantamento inédito feito pelo escritório Mattos Filho.

Os advogados Fernando Dantas Neustein e André Luiz Freire, sócios do escritório, encontraram 4.259 casos envolvendo a nova lei desde sua edição, sendo apenas 528 com alguma relevância.

Nas inovações trazidas na relação entre empresas e setor público, a maior parte das ações se refere à tentativa de restringir a competência dos municípios para exigir autorização para o desenvolvimento de atividades de baixo risco e regular horários de funcionamento desses negócios. Em geral, os tribunais têm dado ganho de causa ao Poder Público e mantido as decisões das autoridades municipais.

A Lei da Liberdade Econômica surgiu a partir de uma medida provisória editada no primeiro ano do governo Jair Bolsonaro (2019-2022). Durante sua tramitação no Congresso, os parlamentares aproveitaram para colocar no texto matérias estranhas ao tema principal, os chamados “jabutis”. A maioria deles tratou de mudanças no Código Civil para regular as relações entre empresas do setor privado.

Essa segunda parte da lei concentra a maioria das decisões analisadas. Nesses casos, em geral, a lei apenas confirmou a jurisprudência que já existia anteriormente, segundo os advogados, tratando de temas como terceirização e desconsideração de personalidade jurídica.

“Encontramos a aplicação da lei em temas periféricos. Em relação aos princípios que seriam mais importantes para nortear uma cultura de empreendedorismo ou botar limites a uma ânsia regulatória do Estado, não achamos praticamente nada. Infelizmente, essa lei tem tido uma aplicação muito limitada”, afirma Fernando Dantas Neustein, sócio de contencioso e arbitragem do Mattos Filho.

PRINCIPAIS TEMAS TRATADOS NAS AÇÕES SOBRE A LEI DA LIBERDADE ECONÔMICA

Direito privado (modificações no Código Civil e outras leis)

– Desconsideração da personalidade jurídica – 173 decisões

– Princípio da intervenção estatal mínima e a excepcionalidade da revisão contratual – 95

– Interpretação dos negócios jurídicos conforme boa-fé – 45

– Autonomia patrimonial das pessoas jurídicas em relação aos sócios – 30

Direito público

– Desenvolvimento de atividade de baixo risco sem autorização – 28

– Desenvolvimento de atividade em qualquer horário ou dia da semana – 13

– Aprovação tácita de atos de liberação de atividade econômica – 3

– Definição livre de preços em mercados não regulados – 2

– Análise de Impacto Regulatório – 2

– Impossibilidade de se exigir certidão sem previsão legal – 1

– Tratamento isonômico em relação a atos de liberação de atividade – 1

Fonte: Mattos Filho Advogados

André Luiz Freire, sócio da área de infraestrutura e energia do mesmo escritório, diz que a legislação também sofreu revés no STF (Supremo Tribunal Federal). Em 2020, por exemplo, a Corte derrubou uma norma que permitia o uso de agrotóxicos se órgãos públicos não analisassem pedidos de liberação em determinado prazo —a possibilidade de dano ao meio ambiente foi considerada como fator mais importante que a questão da liberdade econômica.

“As decisões que nós encontramos limitaram um pouco os efeitos pretendidos na época da edição da lei. Outras citam a legislação apenas por citar. Se a lei não existisse, a decisão seria a mesma”, afirma Freire.

Questionados se o baixo número de ações no Judiciário não refletiria o sucesso da aplicação da legislação pelo Poder Público, os advogados discordam. Afirmam que não há sinais de que tenha havido melhora significativa na relação com o Estado em temas como liberação de atividade econômica, análise de impacto regulatório, impossibilidade de se exigir documentos sem previsão legal ou interferir em preços privados.

Carlos Ari Sundfeld, professor titular da FGV Direito SP (Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas), avaliou o trabalho do Mattos Filho e também afirma que a lei não atingiu seus objetivos.

Ele atribui essa frustração a problemas do texto legislativo: um conjunto de intenções sem nenhum comando para obrigar os agentes públicos a avaliarem constantemente a eficácia das suas normas e levar os chefes do Executivo a cobrarem da administração a revisão permanente das suas práticas.

Para ele, avanços que ocorreram nessa área desde de 2019, como a redução no tempo de abertura de empresas do país, estão mais ligados à ação individual de alguns órgãos públicos e governos locais, ou a outras legislações específicas, do que à lei da liberdade.

Sundfeld coordenou em 2018 um trabalho para discutir o excesso de regulação estatal, com a proposta de fosse feita uma Lei Nacional de Liberdade Econômica. No ano seguinte, houve conversas entre o grupo e o Ministério da Economia, que pegou algumas dessas ideias para a proposta do governo, mas deixou pontos importantes de fora, segundo o especialista.

Segundo ele, o desafio era criar programas permanentes de melhoria regulatória no Brasil, na linha do que é proposto por organismos internacionais, a partir de experiências de vários países, que foram ignoradas pelos autores da proposta.

“Existe uma frustração com a lei de liberdade econômica, que não conseguiu nada diretamente”, afirma. “A lei não funcionou porque não tem um regime de governança que permita a melhoria permanente da organização pública.”

Um projeto de Lei de Governança da Ordenação Pública Econômica está, desde 2019, pronto para ser votado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara em caráter terminativo (sem obrigação de passar em plenário).

*

PRINCIPAIS PONTOS DA MP DA LIBERDADE ECONÔMICA

Alvarás e licenças

Isenção para negócios de baixo risco, como bares, borracharias, e startups

Controle de ponto

Exigência de anotação do ponto para empresas com mais de 20 funcionários —atualmente, o mínimo são dez; Permite o ponto por exceção, em que o registro só é feito quando o horário de trabalho fugir do habitual

Carteira de trabalho

Será emitida pelo Ministério da Economia preferencialmente em meio eletrônico

Inspeção prévia de segurança

Revoga dispositivos da CLT, entre eles um que exigia inspeção prévia de segurança e medicina do trabalho para início de atividades

Patrimônio de empresas

Somente o patrimônio social da empresa responderá por dívidas, sem confundir com o patrimônio do titular, exceto em casos de fraude

Abuso do poder regulatório

Empresário terá embasamento para questionar abusos, em casos que limitem a concorrência. Fica vedado ao poder público tomar ações que favoreçam a concentração de mercado, exigir especificação técnica que não seja necessária para o fim desejado, etc.

Digitalização

Documentos podem ser guardados em meios digitais desde que seja possível comprovar sua autenticidade

Empresa de uma pessoa

Passa a ser permitido empresa com apenas um sócio, sem requisito de capital mínimo

eSocial

Será substituído por sistema simplificado

Fundo soberano

Extingue a poupança pública criada para amenizar efeitos de crise