PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – Os dias chuvosos do inverno de 2025, pouco mais de um ano após a maior tragédia climática do Rio Grande do Sul, evidenciaram o desafio que Porto Alegre enfrenta para deixar para trás a lembrança de água nas ruas.
Na Ilha da Pintada, no extremo norte da capital gaúcha, alagamentos depois de pancadas leves de chuva se tornaram uma realidade na rua do caseiro Márcio Ricardo, 38.
No começo de agosto, Márcio tentou resolver o problema por conta própria depois que poucas horas de chuva causaram um bloqueio de dias na rua. “Quando chove, entope tudo. Eu abri o bueiro e desentupi eu mesmo com uma enxada.”
O bairro Arquipélago foi atingido por uma enchente em junho deste ano, quando cerca de 70 famílias deixaram suas casas após a elevação das águas do Guaíba, cuja cota de inundação é cerca de 80 cm inferior à do centro da capital.
O impacto foi menor e menos traumático do que as enchentes de maio de 2024, quando centenas de moradores precisaram de resgate e a região praticamente submergiu.
Os transtornos com a chuva continuam desde então, mas cada vez menos moradores permanecem para enfrentá-los: muitos já receberam benefícios habitacionais para atingidos pelas enchentes do ano passado e deixaram a ilha. “Aqui não tem mais ninguém. Meu patrão já fez três carretos de pessoas indo embora daqui da rua”, diz Márcio.
A diminuição da população em uma das regiões mais vulneráveis a enchentes em Porto Alegre -e também das mais carentes de saneamento e infraestrutura- pode ajudar na retomada de áreas verdes e na ampliação da capacidade de absorção de água do solo, mas está longe de ser a solução para os desafios de drenagem.
Aumentar a permeabilidade do solo é uma das metas do novo plano diretor de Porto Alegre, que foi apresentado em julho deste ano, com cinco anos de atraso, após disputas judiciais sobre a composição do conselho municipal.
Segundo o plano, o objetivo é elevar a parcela de solo permeável em Porto Alegre. O cálculo atual feito pela Smamus (Secretaria Municipal do Meio Ambiente) é de uma taxa de permeabilidade de 32%, considerando áreas verdes e construídas, com edifícios ou pavimentação. O novo plano tem como meta expandi-la para 45%.
As propostas incluem adensamento na região central e eixos diferenciados para os extremos norte e sul de Porto Alegre, onde áreas preservadas de mata atlântica, praias e banhados ajudam a absorver grandes volumes de chuva.
Essas regiões estão fora do sistema original de proteção contra cheias, erguido na década de 1960 e que entrou em colapso nas enchentes de 2024. O desastre expôs cerca de 150 mil moradores de Porto Alegre, a maioria em áreas protegidas por diques e comportas, a inundações que chegaram a dois metros no centro e superaram quatro metros em bairros da zona norte, como Navegantes e Sarandi.
A Prefeitura de Porto Alegre encaminhou um estudo, que está em andamento com a coordenação do professor emérito do IPH (Instituto de Pesquisas Hidráulicas) da UFRGS Carlos Tucci, para criar um novo sistema que prevê elevar diques, expandir a abrangência do sistema (hoje em 68 km) e buscar alternativas para áreas praianas onde essa solução não é viável.
Paralelamente, a prefeitura encomendou a pesquisadores holandeses um estudo específico sobre a situação do bairro Arquipélago, com conclusão prevista para agosto de 2026.
A região, inteiramente dentro de uma APA (Área de Proteção Ambiental), é vulnerável por estar no Delta do Jacuí, ponto de encontro dos rios Jacuí, Taquari, Caí e dos Sinos. Quando a bacia de um desses rios sofre com chuvas, as ilhas ficam em risco. Nas enchentes de 2024, os quatro atingiram o maior nível já registrado.
O secretário municipal do Meio Ambiente, Germano Bremm, diz que aguarda a conclusão do estudo holandês para identificar alternativas de resiliência e adaptação climática para quem optar por permanecer nas ilhas.
A maior parte dos 5.000 habitantes do bairro vive na Ilha da Pintada, onde há uma colônia de pescadores centenária. São 16 ilhas no bairro, a maioria delas desabitada.
“As pessoas que ali residem também têm um senso de pertencimento”, diz Bremm. “Ter um plano de contingência é saber conviver com a subida das águas.”
Ele defende incentivar a ocupação sustentável como forma de combater a falta de acesso a serviços básicos e a habitação irregular. “A gente entende que houve planos diretores que abandonaram esses territórios, e não nos parece uma decisão acertada.”
O novo regramento também estipula novas alturas máximas de até 130 metros para construções em áreas já urbanizadas ou próximas ao centro. Dentre elas está a avenida Ipiranga, cortada pelo arroio Dilúvio, e o 4º Distrito, antiga zona industrial que hoje concentra os principais investimentos imobiliários da cidade.
Para Vaneska Henrique, coordenadora de planejamento urbano da Smamus, a verticalização controlada e com contrapartida ambiental, como plantio de árvores, pode funcionar para ganhar áreas permeáveis.
“Cria essa possibilidade de liberar um pouco mais o solo em relação às estruturas que a gente tem hoje”, diz. “Se substitui uma edificação como um armazém ou galpão que hoje tem 100% da área edificada com zero permeabilidade.”
A proposta é contestada por entidades ambientalistas como a Agapan (Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural) e a setorial estadual do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RS), que acusam o projeto de privilegiar interesses da especulação imobiliária.
Para o engenheiro ambiental Iporã Possantti, doutorando do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, os critérios de uso sustentável dessas áreas são genéricos e abrem brechas para construções que comprometam áreas de drenagem natural.
Ele cita como exemplo a Fazenda do Arado, propriedade privada de 426 hectares no bairro Belém Velho, no extremo sul da capital. No terreno há ruínas arqueológicas guaranis, fluxo de aves migratórias e uma vasta área de banhado.
“Cabe o centro histórico inteiro dentro da Fazenda do Arado, e ela cumpre esse papel de absorver as águas e ser um refúgio de fauna”, diz Iporã.
O proprietário da área busca autorização para estudar a viabilidade de empreendimentos no local, incluindo um condomínio planejado de alto padrão, um haras e uma escola agrícola, além da delimitação de uma reserva natural.
Estão previstos 38 hectares de ocupação intensa no local. Com o projeto, o bairro, atualmente com cerca de 10 mil habitantes, poderia receber até 7.000 novos moradores.
A Câmara de Vereadores aprovou em 2021 uma lei que alterava o regime urbanístico da área, mas a Justiça suspendeu sua vigência após um pedido do Ministério Público, que identificou falhas nos relatórios de impacto ambiental.
Para Iporã, desenvolver um bairro planejado na região é injustificado, considerando que Porto Alegre enfrenta redução populacional. O censo do IBGE de 2022 apontou uma queda de 5,4% na população em comparação a 2010.