SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O descascado na parede onde deveria estar o rosto de um dos personagens retratados nas Bodas de Caná, passagem bíblica na qual Jesus Cristo transforma água em vinho, alerta para a necessidade de se recuperar um dos principais marcos da comunidade italiana na cidade de São Paulo.

Moradores do Bixiga, na região central paulistana, buscam arrecadar aproximadamente R$ 1,5 milhão para dar início ao processo de restauração da quase centenária igreja Nossa Senhora Achiropita. A meta é conseguir o recurso ainda em 2025.

Até carnês para doações têm sido distribuídos para a comunidade. “Soube disso em uma missa e passei a contribuir com R$ 20 por mês”, diz Conceição Maria de Jesus, 80, moradora do bairro há mais de 30 anos e frequentadora assídua das celebrações dominicais.

Pintura que retrata a passagem bíblica Bodas de Caná desgastada por causa da infiltração; igreja Nossa Senhora Achiropita recebeu autorização do patrimônio público para ser restaurada Rubens Cavallari Folhapress Pintura mural mostra várias figuras em cena histórica, incluindo mulher com véu branco e manto azul no primeiro plano, e outras pessoas ao fundo, algumas com barba longa e roupas antigas. À esquerda, borda decorativa azul e dourada com padrão geométrico. Esse dinheiro é parte dos cerca de R$ 7,2 milhões orçados para a reforma apenas do telhado e da cúpula da igreja.

A arrecadação dos 20% do total da primeira fase é necessária para se autorizar a captação do restante via Lei Rouanet e dar início às obras –paroquianos, inclusive, já estão atrás de grandes investidores.

Posteriormente, há outras etapas de recuperação previstas, que incluem fachada e estruturas, como hidráulica e elétrica. O total estimado é de R$ 20 milhões, em 40 meses de obras, se não houver percalços pelo caminho.

A recuperação do afresco da década de 1950, com Cristo em pé diante da mesa, numa das laterais do altar, assim como todo o suntuoso cenário religioso estampado de alto abaixo nas paredes da igreja, deverá ficar para o fim, quando a umidade não oferecer mais riscos às obras de arte.

A ideia é que parte do processo de restauração já esteja visível nas celebrações do centenário da igreja da Achiropita, em agosto de 2026.

Essa será a primeira grande obra do templo religioso cravado na turística 13 de Maio, rua famosa por suas cantinas, samba, cultura negra e a tradicional festa italiana. Antes disso, houve apenas troca de parte do piso nos anos 1990

Desde 2002 a igreja tem nível de preservação 1, que garante a proteção integral do local e de seus elementos arquitetônicos.

Um olhar atento enxerga o desgaste nos detalhes. Na parte de fora, o halo de São Paulo está em cima do rosto da imagem colocada na torre do sino, ainda na década de 1920, a mando do padre calabrês Carlos Alferano, o primeiro vigário da igreja.

No interior, a cúpula tem pinturas de Nossa Senhora Achiropita retratando ela mesma, e de Nossa Senhora da Guarda com são Luiz Orione ajoelhado –as obras têm diversas falhas nas molduras.

Mas a maior deterioração está na imagem central, da Santíssima Trindade, a quase 20 metros de altura.

Também existem “machucados” nas grandes colunas douradas.

Basta ir ao outro lado da parede onde as Bodas de Caná estão retratadas para se entender as causas do desgaste. O mofo na tinta contrasta com o amarelo da parte externa da igreja.

A ideia de reformar a igreja nasceu em 2019, explica a arquiteta Kátia Elaine Sorrentino. Mas os planos acabaram barrados pelo Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental), porque estavam previstas apenas ações nas pinturas religiosas, sem a necessária recuperação estrutural.

Na sequência, a pandemia esfriou os planos, retomados quando Kátia foi convidada para analisar o veto do órgão municipal. Ela alertou para a necessidade de se encomendar um projeto completo junto a empresa especializada em restauro de patrimônio.

A autorização veio após despacho emitido pelo Compresp em 30 de abril deste ano, após parecer técnico do DPH (Departamento do Patrimônio Histórico), da prefeitura.

“A primeira fase é a mais urgente e foca na recuperação da cobertura e das cúpulas, devido a problemas graves de infiltração que ameaçam as pinturas e a estrutura da igreja”, afirma a arquiteta.

Haverá a necessidade de se fazer uma proteção para que a cúpula não seja prejudicada pelos trabalhos no telhado.

Segundo a arquiteta, o projeto cultural para captação via Lei Rouanet já foi aprovado e está em análise no Ministério da Cultura.

Foi montada uma comissão de arrecadação. O lucro da última festa junina, por exemplo, está todo reservado para o restauro.

Além dos carnês, outras estratégias incluem doações via Pix e realização de eventos comunitários –ideia é realizar um de grande tamanho em abril do ano que vem. O Consulado da Itália será procurado para indicar potenciais investidores.

O dinheiro da tradicional Festa da Achiropita, que levou 250 mil pessoas à 13 de Maio e ruas do entorno nos fins de semana do último mês de agosto, não entra na conta. Auditado, ele custeia as obras sociais da igreja.

Um livro de 20 páginas para colorir, com as obras de arte do templo, é dado como lembrança a quem doar quantias maiores.

“Entendemos que nem todos estão familiarizados com as novas tecnologias, por isso disponibilizamos métodos variados para que cada um possa colaborar da maneira mais conveniente”, diz o padre Roberto Silva, o padre Beto, pároco da igreja.

Outro padre, Rodinei Tomazella, lembra que a comunidade dali é peculiar. “É uma devoção que veio do sul da Itália, da Calábria, onde tem uma igreja da Achiropita”, afirma, reforçando que só existem duas em homenagem à santa no mundo, a italiana e a paulistana.

André Vinolo, integrante da comissão, afirma que doadores poderão assinar um “livro de ouro”. “Depois da reforma, ele será colocado em uma espécie de cápsula do tempo embaixo do altar. Os nomes desses colaboradores ficarão registrados para sempre.”

Um dos carnês para pagamento de doações está com a família de Taiane Santos da Silva, 26, dona de uma lanchonete ao lado da igreja. “Somos devotos e vizinhos de parede, por isso sabemos da importância da reforma”, diz.