SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Primeiro, o que chama a atenção é a beleza da imagem. Uma jovem negra e sua sobrinha estão do lado de fora de um antigo teatro. Seus vestidos de renda evocam a aura de elegância e sofisticação dos anos 1950. Depois, o que se impõe sobre a fotografia é a barbárie.

“Entrada para pretos”, diz em cores cintilantes e letras garrafais uma placa pendurada na fachada do cinema. De repente, a atmosfera de fantasia se dissipa para dar lugar aos Estados Unidos da segregação racial, período em que o racismo não estava inscrito apenas nos costumes, mas também nas leis do país.

Ao registrar essa imagem, em 1956, Gordon Parks mostrou que a beleza da negritude era confrontada de forma cotidiana pelo horror da discriminação racial. Considerada uma das 25 fotografias mais importantes dos últimos 70 anos pelo jornal The New York Times, essa obra pode ser vista agora na maior mostra de Parks já feita na América Latina.

Em cartaz no Instituto Moreira Salles, na capital paulista, a exposição “A América Sou Eu” reúne cerca de 200 trabalhos de um dos principais nomes da fotografia mundial. Ao longo da carreira, Parks se notabilizou por registrar a rotina de comunidades negras e por apontar as lentes para a injustiça racial da qual ele próprio era uma das vítimas.

Nascido em 1912 em Fort Scott, uma cidade segregada no Kansas, ele decidiu comprar a primeira câmera aos 25 anos, inspirado pelos retratos de imigrantes publicados em uma revista. Após aprender a fotografar sozinho, começou a trabalhar em jornais da chamada imprensa negra, retratando casamentos, formaturas e bailes de debutantes.

Ganha evidência nesses registros não o que separa negros e brancos, mas aquilo que une esses dois grupos, como a necessidade de amar e a vontade de celebrar conquistas. “É no cotidiano que a nossa humanidade resiste. Nele, nos tornamos todos iguais”, diz Janaina Damaceno, que assina a curadoria da mostra ao lado de Iliriana Fontoura Rodrigues.

Uma das fotografias da exposição, por exemplo, retrata um ambiente familiar como tantos outros. A filha está deitada sobre o chão fazendo o dever de casa, enquanto o pai e a mãe estão sentados em poltronas na sala de estar. “Mesmo sem ser negro, é possível se reconhecer nessas pessoas. A partir do discurso visual, ele mostra a negritude como parâmetro possível para a humanidade.”

A repercussão de seus retratos o ajudou a ser contratado pelo Farm Security Administration, um antigo órgão do governo americano.

Em 1942, Parks desembarcou em Washington acreditando que encontraria igualdade, mas esbarrou na mesma segregação de sua cidade natal. Foi nesse período de desencanto que ele produziu uma das obras mais icônicas da fotografia americana, um dos destaques da exposição.

Intitulada “American Gothic”, em referência à pintura homônima de Grant Wood, a imagem mostra uma mulher com o olhar altivo na frente da bandeira americana. É Ella Watson, faxineira que o fotógrafo conheceu ao trabalhar no Farm Security Administration .

Enquanto a tela de Wood celebra as tradições americanas, a fotografia de Parks vai na direção contrária. O aparente patriotismo da imagem é maculado pela presença de um rodo e de uma vassoura. O emblema americano, por sua vez, é retratado com os contornos difusos, como se fosse uma alucinação prestes a desaparecer.

“Esse retrato mostra uma mulher que é filha de um homem linchado, esposa de um marido assassinado e mãe de uma filha morta por violência obstétrica. Ao colocá-la na frente da bandeira americana com um rodo e uma vassoura, Gordon mostra como as pessoas negras têm a sua cidadania rebaixada”, diz Damaceno, a curadora da mostra.

Para ela, essa imagem também é importante por confrontar a ideia de que mulheres negras devem ser sempre servis, amáveis e maternais quando desempenham trabalhos domésticos. “Ella é o aposto disso. Ela está séria e compenetrada. É uma trabalhadora, não uma figura subserviente.”

Muitas imagens da exposição, aliás, rompem estereótipos ao retratar pessoas negras de forma multidimensional. Foi isso o que Parks fez ao fotografar Red Jackson, o líder de uma gangue do Harlem, bairro de Nova York.

Uma das imagens mais impressionantes da mostra retrata o jovem fumando um cigarro, enquanto olha pela janela. A expressão em seu rosto carrega a empáfia de quem sabe que aquele bairro todo lhe pertence. Essa soberba, porém, não dura muito. Em outras fotografias, Jackson revela doçura diante dos parentes e fragilidade durante um velório.

As obras também evidenciam o olhar cinematográfico de Parks, artista que buscava criar narrativas por meio de sequências fotográficas. Em 1969, estreou na direção com o filme “The Learning Tree”, tornando-se o primeiro diretor negro em um grande estúdio de Hollywood.

O pioneirismo, inclusive, não era uma novidade para ele. Duas décadas antes, ele já havia se firmado como o primeiro fotógrafo negro da prestigiada revista Life. Em 1961, a publicação enviou Parks ao Rio de Janeiro para que ele registrasse a vulnerabilidade social das favelas cariocas.

Durante a incursão, o americano conheceu Flávio da Silva, um menino desnutrido que sofria severas crises de asma. Após ver a criança levando uma caixa d’água na cabeça, o fotógrafo decidiu fazer dele o protagonista do projeto.

Quando foram publicadas, as imagens geraram enorme repercussão nos Estados Unidos e deram origem a uma campanha que arrecadou cerca de US$ 30 mil para a criança. Quem for à exposição no IMS verá algumas da imagens que compõem o ensaio.

Ainda para a revista Life, Parks fez uma série retratando a segregação racial no Sul dos Estados Unidos.

O artista, no entanto, decidiu ir além da opressão ao revelar as redes de afeto forjadas mesmo sob a violência racista. Vemos, por exemplo, a foto de um idoso envolvendo sua mulher com o braço. Ao lado do casal, uma árvore repleta de flores cor-de-rosa cria um cenário de aspecto quase celestial.

Algo parecido pode ser visto no segundo andar da exposição, onde há a foto de um menino deitado sobre a relva. Enquanto ele mantém os olhos fechados, uma joaninha presa por um barbante passeia pela sua testa. “É uma criança negra em paz”, diz Damaceno. “Não tem a professora dizendo que ele não dá conta de alguma coisa ou pessoas encarando como se ele fosse um marginal.”

A impressão é a de que o menino está perdido em devaneios, fabulando utopias. Não por acaso, a sala expositiva ao lado se chama “Eu Tenho um Sonho”, em referência ao célebre discurso de Martin Luther King durante a Marcha sobre Washington.

Em agosto de 1963, o movimento reuniu mais de 250 mil pessoas para protestar contra a discriminação racial dos Estados Unidos. Além de imagens que o fotógrafo fez desse ato, a mostra leva ao público retratos de líderes dos movimentos civis, como Rosa Parks, Malcolm X, Eldridge Cleaver e do próprio Martin Luther King.

A curadora Iliriana Fontoura Rodrigues diz que imagens como essas são uma forma de perpetuar memórias. “Elas oferecem a chance de um encontro com o que aconteceu, com o que permanece e com aquilo que deveria ser”, afirma. “Em seu trabalho, Gordon entregava aquilo que a gente de fato é. Ele mostrava a nossa humanidade.”

O próprio fotógrafo deixava claro o objetivo de mostrar a humanidade em comum entre negros e brancos.

“Entre nós dois há algo que vai além do sangue ou do preto e branco. Trata-se da nossa busca compartilhada por uma vida melhor”, escreveu ele em 1968, na revista Life. “As coisas pelas quais luto são as mesmas que você. As necessidades dos meus filhos são as mesmas que as dos seus. Eu também sou a América. A América sou eu.”

Gordon Parks: a América sou eu

Quando: Ter. a dom., das 10h às 20h. Até 1 de março de 2026

Onde: IMS Paulista – Avenida Paulista, 2424. São Paulo

Preço: Gratuito

Classificação: Livre