BELÉM, PA (FOLHAPRESS) – Documentos da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) apontam a ofensiva de, pelo menos, sete empresas em busca da exploração de créditos de carbono na Terra Indígena Vale do Javari, com estratégias que incluiriam invasões ao território e divisão das comunidades, como consta em relatórios técnicos do órgão do governo federal.
A Funai chama essas empresas, em um dos documentos, de “biopiratas do carbono”.
Dos 7 empreendimentos, 3 assinaram um contrato com a Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari) para geração de créditos de carbono, créditos de biodiversidade e outras soluções baseadas na natureza.
O contrato, assinado em 9 de dezembro de 2022, prevê exclusividade à empresa brasileira Comtxae Serviços Educacionais, Cultura e Tecnologia (sediada no Rio e com capital social de R$ 5.000), Biotapass (espanhola) e à argentina Cooperativa de Trabajo Integral Biota.
No último dia 25, o MPF (Ministério Público Federal) no Amazonas moveu uma ação civil pública na Justiça contra as três empresas e contra a Univaja, com pedido de anulação do contrato e de pagamento de uma indenização, pelas quatro rés, no valor de R$ 10 milhões, a título de reparação por danos morais coletivos.
A Procuradoria em Tabatinga (AM), uma das cidades mais próximas ao Vale do Javari, na tríplice fronteira de Brasil, Colômbia e Peru, apontou irregularidades e ilegalidades detectadas pela Funai e “risco gravíssimo de contato e de dizimação” de povos indígenas isolados. O Javari é considerado o território com a maior população indígena em isolamento voluntário no mundo.
Em nota divulgada após a publicação da notícia sobre a ação do MPF, a Univaja afirmou que monitora desde abril de 2022 a “grande investida e assédio de empresas” e que houve “cooptação velada de lideranças” e “grave violação da autonomia dos povos indígenas”. Na visão da associação, os documentos foram assinados de forma fraudulenta, e ela se diz vítima desse processo.
“A Univaja apoia a necessidade de investigação profunda e é a principal interessada no esclarecimento dessa situação”, cita a nota. A entidade disse não reconhecer a legalidade de documentos para venda de créditos de carbono.
A Comtxae disse que foi usada e enganada pelas empresas Biota e Biotapass. E que houve “transações obscuras” por parte de ex-diretores.
A Biota afirmou que ainda não foi notificada pelo MPF. Segundo a empresa, não houve ingresso de representantes no território. Uma consulta pública, na sede da Univaja, reuniu 80 indígenas de lideranças, por três dias, e depois houve consulta nas aldeias, disse a empresa.
A Biotapass não respondeu aos questionamentos da reportagem, enviados em emails citados na ação civil pública e no inquérito aberto.
A ação foi movida a partir de um procedimento de investigação instaurado em 2023, convertido em inquérito civil público. Os documentos do inquérito detalham as ofensivas de empresas por créditos de carbono no Vale do Javari, o segundo maior território do país, com 8,5 milhões de hectares, quase o tamanho de Portugal.
As investigações tiveram início a partir de denúncias de indígenas mayurunas sobre ingresso de empresários colombianos no Vale do Javari, em novembro de 2022, sem o consentimento de lideranças e sem autorização da Funai. Conforme a denúncia feita, os representantes eram ligados à empresa CO2Cero e a uma segunda descrita como “Emanuel A”.
A presença dos estrangeiros e a oferta de créditos de carbono causaram “conflitos internos” nas comunidades, que rejeitaram a ideia, inclusive em documento assinado por diversos indígenas, encaminhado à Funai.
A CO2Cero disse que a entrada no território foi gerenciada pela empresa Emanuela SAS. Não foram assinados contratos, segundo a CO2Cero. “Estávamos só explorando a oportunidade como desenvolvedores técnicos.”
A coordenação regional da Funai na região do Vale do Javari disse ainda, num ofício de 15 de dezembro de 2022, que a empresa Bio Tech também “estaria assediando alguns indígenas a celebrar contratos de comercialização de créditos de carbono, sem o consentimento das comunidades afetadas”. A reportagem não identificou que empresa seria essa.
Naquele momento, a Univaja já havia assinado um contrato com Comtxae, Biotapass e Biota.
Conforme a ação do MPF, houve ingresso irregular no território e ausência de autorização da Funai; violação à Constituição Federal, uma vez que o contrato se refere à Univaja como “proprietária” do Vale do Javari; cláusula prevendo exclusividade na exploração de créditos, em todo o território, “restringindo a autonomia dos povos indígenas”; e limitações indevidas a usos tradicionais.
Outras irregularidades listadas na ação, com base em documentos da Funai, são ausência de consulta livre aos indígenas, risco aos isolados por prever a totalidade do território no negócio, cláusulas desfavoráveis à Univaja que deve assumir riscos e custos de um fundo fiduciário e duração de dez anos do contrato.
Segundo a Funai, a Comtxae foi alvo de denúncias por suspeita de lesão a artesãos marubos, em que teria levado artesanato para venda no Rio sem pagamento aos indígenas.
Documentos do órgão federal citam que a empresa levou risco sanitário a indígenas isolados; participou de invasão por terra, usando um varadouro; esteve em diversas outras terras indígenas da Amazônia ocidental, com “delito sistemático” de ingressos não autorizados; divulgou imagens de indígenas para marketing da empresa; e apoiou a abertura de uma estrada ilegal de 40 km.
Representante da Biota no contrato assinado com a Univaja, Sebastián Torres afirmou que o representante da Biotapass, Alejandro Gonzalez (que também assina o contrato), passou a atuar em outra empresa, chamada Indigenía, e que essa empresa “está celebrando novos contratos de crédito de carbono com as associações do Vale do Javari”, como consta em um documento da Funai.
Os dois parceiros se desentenderam, e Sebastián decidiu denunciar Alejandro à Funai, além de renunciar ao contrato dos créditos de carbono, cita o documento, de abril de 2024.
Sócio da Comtxae, Lucas Boscacci Lima disse que se desentendeu com os parceiros após a assinatura do contrato com a Univaja, e que foi “literalmente roubado” por Alejandro e Sebastián. Lucas afirmou que foi agredido pelos dois e que teve o celular roubado, após gravação de uma reunião com indígenas. Sebastián nega e diz que o que houve foi uma briga entre Lucas e Alejandro.
Lucas negou ter invadido a terra Vale do Javari e ter desviado artesanato marubo para venda no Rio. A atuação dele no território se refere, originalmente, a kits de internet e energia solar, afirmou. Lucas disse ter prestado três depoimentos à PF (Polícia Federal).