SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Euzhan Palcy não queria ir para Hollywood. É o que diz a diretora, consagrada a primeira cineasta negra a ter um filme produzido por um grande estúdio da meca do cinema.

Aos 67, a franco-caribenha desembarca no Brasil para a 49ª Mostra de Cinema de São Paulo, onde deve receber o Prêmio Humanidade, homenagem concedida a figuras que abordam questões sociais e políticas em suas obras. O evento ainda exibirá seus três principais filmes, “Sugar Cane Alley”, “Assassinato sob Custódia” e “Siméon”.

O convite para produzir em Los Angeles, nos Estados Unidos, surgiu após o sucesso de seu primeiro longa, “Sugar Cane Alley”, baseado no livro homônimo de Joseph Zobel. “Eu não queria ir para Hollywood, porque eu não gostava da forma como pessoas negras eram representadas em filmes de Hollywood”, diz a diretora, em entrevista.

O filme de 1983 é um retrato da dura realidade dos trabalhadores negros nos campos de cana-de-açúcar de Martinica, ilha localizada no Caribe e território da França, na década de 1930. Com ele, Palcy se tornou a primeira mulher negra a vencer o prêmio de melhor primeiro filme no César, o Oscar da França, e o Leão de Prata do Festival de Veneza.

Foi Robert Redford que a convenceu a fazer as malas rumo à Califórnia. Os dois se conheceram quando ele a convidou para um evento de diretores do Festival de Sundance, principal evento do cinema independente dos Estados Unidos —do qual Redford foi um dos fundadores.

Na época, Palcy tinha recebido o convite de uma produtora para trabalhar em Hollywood, que não pretendia aceitar. Redford, além de ator consagrado, era diretor dos sucessos “Gente como a Gente” e “Rebelião em Milagro”. O cineasta morreu no mês passado, aos 89 anos, e foi responsável por mudar a vida de Palcy, como diz ela própria.

“Ele disse, ‘eu quero que você tente. Eu sei que Hollywood é um mundo difícil, mas você é forte e sabe o que quer, precisa confiar em si mesma’. Ele então chamou seu assistente e disse, ‘diga a produtora que estamos colocando Palcy no avião’. E foi o que ele fez”, conta ela, entre risadas.

O resultado foi “Assassinato sob Custódia”, que levou Marlon Brando a ser indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante. O filme escancara as injustiças do apartheid na África do Sul ao contar a história de um professor branco que, ao ver o filho de seu jardineiro negro ser preso e espancado, se torna um rebelde.

Gravar o longa, porém, não foi simples. Quando foi chamada a Los Angeles, Palcy conta, os produtores de um grande estúdio queriam que ela fizesse um filme sobre Malcolm X. Ela recusou. “Eu disse que deveriam chamar um diretor afro-americano para fazer esse filme.”

Depois que Palcy conseguiu convencer seus financiadores sobre o tema do apartheid, as interferências no enredo foram constantes, e a resistência da diretora levou o estúdio a romper o contrato. Por sorte, a MGM entrou na produção logo em seguida, lembra ela.

Falar sobre o apartheid não era tarefa fácil, e pessoas a favor dos direitos civis sofriam ameaças pelo mundo. Apenas um ano antes do lançamento do filme, a ativista sul-africana Dulcie Evonne September foi assassinada em Paris, na França. “Eu sabia que precisava fazer aquele filme. Eu me tornei cineasta para falar sobre meu povo, sobre o que estava acontecendo para ajudar a liberar os negros da África do Sul em seu próprio país.”

Apesar dos temas políticos de seus filmes, ela afirma que nunca fez cinema pensando que só pessoas negras veriam suas histórias —pelo contrário, atingir mais pessoas, para ela, é uma estratégia para impulsionar o sentimento de solidariedade entre os povos para questões urgentes de cada época. “Meus filmes não são negros ou brancos, são coloridos. Ou seja, esses temas são universais”, diz.

Palcy recebeu o Oscar honorário em 2022 pelo conjunto de sua obra. Ela analisa que o cerco que Donald Trump vem impondo sobre a cultura, que inclui a ameaça de uma tarifa de 100% sobre filmes feitos fora dos Estados Unidos, é um tiro do presidente no próprio pé —e irá acelerar a saída de produções da Califórnia. ” Hollywood não é o único lugar onde as pessoas podem fazer filmes. Nós não estamos casados com Hollywood”, diz.